Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
Uma comparação impressionista das listas de candidatos, nestas eleições de 2018, com o que era a representação política no país há 60 anos, mostra que o perfil do político brasileiro mudou muito. Então, estávamos mais perto da concepção republicana ideal do poder, que encobria, no entanto, persistências da limitada representação política da época da escravidão. Hoje, ainda que politicamente confusos, estamos mais próximos de uma representação democrática.
As listas têm indícios de que estamos também confusos em relação a nós mesmos. São numerosos os candidatos que se apresentam ao eleitorado com o chamado nome de urna diverso do respectivo nome civil. O que querem dizer os que assim se identificam e se candidatam e, também, os que neles votam? Há muitos nomes esdrúxulos como, em São Paulo, o de Buscando o Imponderável e o de Geraldo, o Iluminado; no Ceará, Faisk e Fumaça; na Bahia, Vado Malassombrado; no Rio Grande do Sul, Cavaleiro da Esperança e Gauchinho de Deus.
Se as listas de nomes de urna para deputado federal dão indicações do que é nossa política, ao revelarem a extensa crise de identidade dos brasileiros, também dão esclarecedora visibilidade política ao pluralismo do país.
É extensa a participação de pretos e pardos em quase todos os Estados. Embora muitos candidatos pretos, pardos e brancos estejam em dúvida ao assumir a identificação racial que a ficha eleitoral lhes pede.
Há casos, como o de uma mulher preta, com curso superior, que se autodefine como branca. E há casos, como o de uma loira que se identifica como preta. Isso em São Paulo. Há pretos cujos apelidos os puristas das demandas raciais poderiam atribuir a suposto racismo de branco: na Bahia, Delegada Negrona e Marcos Antônio, o Negrão, ambos realmente pretos.
Muitos brancos identificam-se como pardos, tímida aceitação da nova onda de identificação racial no Brasil. A pluralidade racial brasileira, se tem os reacionários que a recusam, tem também os que se identificam com a concepção de um Brasil multirracial e mestiço. No Ceará, uma candidata parda conciliou os opostos ao adotar o nome de urna de Dani Alvinegra. Em Pernambuco, outra também parda, tem por nome de urna A Marron.
São muitas as mulheres candidatas. As candidaturas de mulheres, tanto quanto as de pretos e pardos, expressam o empenho dos respectivos grupos em corrigir a injustiça histórica de seu quase banimento da cena política.
É também notório que há muito mais evangélicos, especialmente pastores e pastoras, disputando uma cadeira de deputado federal. E a diversidade das profissões é hoje maior do que aquela do tempo em que a nossa representação política era predominantemente de fazendeiros e bacharéis.
Os nomes de urna diferentes dos nomes civis, porém, indicam que a sociedade pós-moderna não oferece a extenso número de brasileiros referências por meio das quais se vejam como cidadãos de um país chamado Brasil e membros de uma sociedade que possa ser definida como nossa. Os nomes de urna são indicações da fragmentação desta sociedade.
Os grupos de referência subjacentes a esses nomes são politicamente pobres e limitados àquele que é o público de relacionamento dos candidatos. Nossa identidade básica é comunitária. Ao se conceber o país como mera sociedade de classes sociais, o que ocorreu foi sobretudo a disseminação de identidades sociais precárias e redutivas, próprias da realização insuficiente, entre nós, da sociedade de consumo e de seus agentes. Ainda não conseguimos ver além da pessoa que nos vende um remédio ou a que diagnostica nossa doença.
Nosso mundo é o dos relacionamentos cara a cara, ainda que o outro seja fantasiosa personagem de circo, rádio ou TV, como o Bira do Jegue, na Bahia. Não vemos nem compreendemos o todo e suas ocultações, o lado invisível das relações políticas. Nosso sistema político nos priva da mediação dos conceitos e nos limita à mediação de pessoas.
Grande número de candidatos adota nome relacionado com a ocupação ou com a profissão. Dirigem-se a clientes, não a cidadãos. É o caso dos que antecedem o nome com um "Dr. Fulano", ou um "Professor sicrano". Ou, Adriana Vaqueira, André o Cobrador, Robério da Cesta Básica, Pinheiro do Queijo, Ribamar do Hospital, Marconi da Galinha, Paulo da Autoescola, Andréia da Farmácia, Cabral dos Químicos, Daniel Perueiro, Edson Bananeiro, Nairzinha do Tempero.
Chama a atenção o destaque dado nos apelidos eleitorais às funções policiais e militares, Sargento, Coronel, Comandante, Delegado Federal. Reflexo destes tempos de busca de políticos no universo profissional do controle social repressivo. Nossa pobreza política começa no vazio de nome do nome de urna.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociologia como Aventura" (Contexto).
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