- O Estado de S.Paulo, 23/3/2019
Até Guedes e Moro se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País
A repetição insistente choca e surpreende. Dia sim, outro também, um fato novo comprova a tendência. Uma declaração, um tuíte presidencial, a entrevista de um filho, a fala de algum ministro. Até os mais técnicos, como Guedes e Moro, se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País. Não conseguem falar com autonomia, gastam energia em bajulações desnecessárias, que decepcionam e confundem.
Precisamos, por isso, insistir, repisar pedras já desgastadas por passos recorrentes. Temos de fazer esse movimento para ver se compreendemos como é que, num curto espaço de tempo, conseguimos cair tão baixo, a ponto de não sabermos mais o que unifica o País, quem governa e o que virá pela frente.
Tudo mudou demais no Brasil de 2018 para cá, em se tratando de política e governo. A crônica tem sido abundante a esse respeito. O País enveredou por uma trilha da qual não sabe como sair e que a cada dia fica mais obscura. Há novos hábitos sendo cozinhados num caldeirão que é revolvido por uma trupe de pessoas pouco qualificadas, sem generosidade, fanatizadas por uma narrativa que não se imaginava poder sair do submundo intelectual em que vicejava. Vem daí a atitude de pasmo e surpresa que se abateu sobre o campo político laico e progressista, dos liberais democráticos às esquerdas fundamentalistas, passando pela esquerda democrática. Estão todos paralisados, com um grito preso na garganta, sem saber que rumo tomar, como se opor ou resistir à onda direitista e fascistoide que ameaça prolongar-se, misturada com um neoliberalismo impreciso na economia e todo tipo de improvisações.
Tal onda segue a cavalo de um anticomunismo apoplético que se articula com uma declarada, mas não esclarecida “moralização dos costumes”. Estabelece-se uma relação de causalidade entre duas dimensões que nada têm entre si: o “comunismo” seria o causador da decadência moral da sociedade; seu materialismo, seu desejo de poder, seus métodos de trabalho e seu caráter insidioso estariam na base da desagregação da ordem social e da corrupção das famílias, todas elas recatadas e tementes a Deus. Seria o caso, então, de desconstruir os fundamentos do mal para, quem sabe, mais à frente, construir algo novo. É assim que o novo grupo dirigente justifica sua inoperância governativa, sua falta de propostas e suas trapalhadas.
A moralização pretendida quer repor uma ordem que teria sido perdida, recuperar limites que teriam sido ultrapassados, enquadrar a diversidade social num quadro unitário que ressoa a autoritarismo, fazer da educação e da cultura uma extensão passiva das palavras bíblicas, num criacionismo extemporâneo e avesso ao mundo moderno e às próprias tradições nacionais. Quer fechar o País à influência de um “globalismo” não compreendido, visto como ambiente para a reprodução das esquerdas e a desnacionalização do País. Quer criar um povo submisso, que se movimente pouco, não ouse nem atravesse os Rubicões da vida, não se dê ao direito de usufruir as margens de liberdade ampliadas pela modernidade, não conteste hierarquias e autoridades, especialmente as emanadas dos super-heróis da nova era.
Tudo isso é absurdamente sem sentido, faz soar os tambores da irrazão.
Não é acidental que a bajulação se tenha convertido em estilo de atuação. Há “libertadores” que precisam ser incensados, Trump acima de todos, líderes que conduzirão a humanidade de volta ao leito da nação e varrerão os “subversivos”, os ímpios, da face da Terra. A recente viagem presidencial a Washington mostrou quão longe pode chegar tamanha disposição à subserviência.
Não sabemos a força que essa operação terá diante dos modos de agir, pensar e sentir impulsionados pelas dinâmicas da modernidade radicalizada, que reiteram o indivíduo cioso de sua privacidade e de sua responsabilidade cívica, que põem em marcha uma individualização que tensiona os nexos entre as pessoas e os grupos, que explodem as velhas modalidades de ordem e disciplina. A mesma modernidade que tensiona a democracia e produz intenso desejo de identidade também multiplica direitos de todo tipo e abre clareiras democráticas, desafiando os poderes constituídos, os hábitos políticos estruturados, as figuras tradicionais do associativismo (partidos, sindicatos), projetando as populações num vórtice incessante e fora de controle. Vivemos um tempo de complexidades categóricas, hostis às formas simples de pensamento e ação.
Não se deve dar de barato que a pretendida regressão nos costumes será vitoriosa. Sua maior dificuldade é precisamente o que lhe dá força inicial: sua grosseria, seu linguajar chulo, sua ruptura com a ciência e a democracia, seu desprezo pelas liberdades, sua mediocridade técnica. São esses elementos que fazem a pregação fanatizada obter audiência e mobilizar uma legião de seguidores. Mas como será quando ela tiver de entregar o que promete e que colide com os termos da vida atual, entra em choque com eles e é por eles deslegitimada? Como será quando seus articuladores políticos e governamentais tiverem de explicar à população o mau governo que praticam, com sua crueldade e suas mãos sujas de imposturas intelectuais e baixarias vis?
Não se poderá sustentar ad infinitum que as desgraças do mundo se devem ao “comunismo”, às “esquerdas” e ao “globalismo”, ou à traição dos que se aproximaram do novo panteão para depois abandoná-lo, arrependidos. A caça aos traidores não sobrevive quando os caçadores têm o rabo preso e não são capazes de oferecer algo mais do que ofensas e estigmatizações.
De resto, pelas pedras do caminho sabemos bem para onde nos leva o anticomunismo vociferado como se fosse o dernier cri da civilização. Manifestado como ideologia, ele só consegue criar na sociedade divisões sucessivas entre bons e maus, os nossos e os deles, levando pelos ares qualquer possibilidade de uma reconstrução efetiva.
*Professor titular de Teoria Política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
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