- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Pior presidente da história do país, Bolsonaro tem todos os predicados indesejáveis para enfrentar a crise atual
A expansão da pandemia de coronavírus traz milhares de más notícias todos os dias. São mortes e casos da doença crescentes, com situações calamitosas principalmente na Itália, Espanha e agora nos EUA. Além da perda de vidas, os sistemas de saúde entraram em colapso em muitos lugares. A economia mundial terá seu pior desempenho desde a crise de 2008, na melhor das hipóteses produzindo uma grande recessão, e na pior, gerando uma depressão similar à da década de 1930. O Brasil não escapará dessa realidade, apesar de o presidente Bolsonaro dizer que teremos apenas uma “gripezinha”. É um período de trevas, mas do qual muitos ensinamentos podem surgir.
A crise atual tem uma multiplicidade de efeitos que a torna muito mais complexa do que qualquer outra depois da Segunda Guerra Mundial. Afetará não só a saúde, mas também a economia, a organização da sociedade, a política dentro dos países e as relações internacionais. Disso resulta a sensação de um cenário mundial sombrio.
No caso brasileiro, o problema é ainda maior não apenas por conta das nossas limitações de recursos e da enorme desigualdade social. No momento mais difícil do país em décadas, está no comando um timoneiro que pode ser caracterizado, tranquilamente, como o pior presidente da história do Brasil. Bolsonaro tem todos os predicados indesejáveis para enfrentar a crise atual: político radical que vive da polarização e não do diálogo, inimigo da ciência, da imprensa e de qualquer visão diferente da dele, além de não ter equilíbrio emocional para o posto que ocupa. O pior de tudo é que não consegue organizar e coordenar seu governo, inclusive muitas vezes atrapalhando seus ministros. É este o líder de que precisaríamos agora?
O cenário apresentado é muito difícil e desalentador. No entanto, o tamanho e a complexidade da crise estão trazendo grandes ensinamentos ao mundo. Não é possível dizer que todos aprenderão tais lições, porém, as pressões vindas da realidade serão muito fortes. Há quatro questões que exemplificam bem como a pandemia do coronavírus é elucidativa sobre a necessidade de se mudar a visão dominante.
O primeiro ensinamento advindo dessa crise diz respeito à importância do Estado no século XXI. Obviamente que os governos não são capazes de resolver sozinhos todos os problemas coletivos, precisando criar formas de coordenar suas ações junto à sociedade, ao mercado, aos especialistas e aos organismos internacionais.
Também não é desejável que o aparelho estatal seja gigantesco e defina todo o raio de ação dos indivíduos, pois essa postura o torna, ao mesmo tempo, ineficiente e incontrolável. Todavia, o aumento da complexidade dos problemas no mundo contemporâneo torna necessária a existência de uma organização legítima e qualificada para liderar a esfera pública: o Estado, ressuscitado pelo coronavírus.
Problemas ambientais, efeitos perversos da revolução tecnológica, epidemias, envelhecimento da população e diversas formas antigas e novas de desigualdade são temáticas que não serão resolvidas por uma visão estreita de liberalismo econômico, ainda mais se ela vier acompanhada pela falta de liberalismo político. Nada substituirá o Estado no curto ou médio prazo no campo da ação coletiva. Sua ausência, como comprova a atual pandemia, resulta em algum tipo de distopia, ao estilo “Mad Max” ou “Blade Runner”.
Em linhas gerais, todas as nações precisam hoje de um Estado competente, aberto à participação social, capaz de atuar em rede com outros atores e que seja, concomitantemente, preventivo em relação aos problemas e adaptável a novas situações. É de uma estrutura pública como essa que o Brasil precisa hoje. O problema é que o governo Bolsonaro faz um discurso e tem uma prática que batem de frente com este modelo estatal. Sua descrença em relação aos especialistas e aos políticos, a dificuldade em dialogar e criar mecanismos de concertação social, a falta de visão de futuro, a desorganização governamental e, principalmente, uma liderança presidencial que se orienta pela manutenção do poder e não por projetos de políticas públicas resumem a engrenagem da atual gestão.
O Estado é extremamente necessário na criação das condições que viabilizam um desenvolvimento mais sustentável dos países, especialmente em setores como educação, saúde, meio ambiente e ciência e tecnologia. Esse é o segundo grande ensinamento trazido pela pandemia do coronavírus. Após a crise de 2008, os líderes mundiais, em sua imensa maioria, dividiram-se em dois tipos: os que acreditavam que a globalização econômica resolveria os problemas das nações e os que colocaram toda a sua fé num populismo nacionalista baseado em valores culturais conservadores. Obviamente que a segunda tendência é muito mais maléfica, mas ambas as visões ignoraram um fato básico: uma sociedade que garante o bem-estar de seus cidadãos depende de boas políticas públicas, especialmente aquelas que ampliam o estoque de capital individual e social para além da riqueza econômica.
Sem ignorar o efeito avassalador e sorrateiro do novo vírus, o fato é que o se vê hoje são países, incluindo aí os ricos, que não têm uma estrutura de saúde adequada para os desafios do século XXI. É inacreditável que uma nação que tem as melhores universidades do mundo, como os Estados Unidos, não consiga ter hospitais com cobertura decente para sua população. Mas os americanos não estão sós nesta história, dado que a Europa, berço do Estado de bem-estar social, mostrou-se muito mais vulnerável do que se imaginava. Outras epidemias virão, como também desastres naturais por conta da questão climática e desafios enormes para modificar a educação e os empregos frente às inovações da Quarta Revolução Industrial. Que lugar do mundo mais desenvolvido está efetivamente se preparando para o que vem pela frente? O coronavírus deixou o rei nu.
O governo Bolsonaro nos coloca a léguas de distância do que já está sendo insuficiente no mundo desenvolvido. Suas políticas educacionais, ambientais e para a ciência são desastrosas. Mesmo que o país cresça bem nos próximos três anos, o que parece cada vez mais distante, haverá uma perda enorme dos tipos de capital que realmente geram a riqueza e o bem-estar das nações. Afinal, quanto custa no longo prazo destruir a universidade e a pesquisa científica de uma nação? Será que a equipe do Paulo Guedes sabe fazer essa conta?
A condução da crise do coronavírus pelo ministro da Saúde pode ter gerado esperança em boa parte da população, até porque finalmente apareceu alguém que conhece políticas públicas e que não está preocupado em encontrar inimigos imaginários em guerras culturais. Sem tirar os méritos de Mandetta, sua eficácia tem mais a ver com o conhecimento acumulado pela coalizão sanitarista que criou o SUS.
Só que a racionalidade científica não pode imperar no governo Bolsonaro, de modo que o presidente sabota a política de seu próprio governo. A prova de fogo para o presidente, entretanto, se dará no tratamento médico da população e não nas redes sociais que o apoiam.
Desse ponto pode ser feito o gancho com o terceiro ensinamento da crise do coronavírus, muito valioso para o Brasil: a desigualdade se faz mais presente em enormes catástrofes naturais ou pandemias. A maneira como a doença se espalhar e afetar as periferias e favelas, bem como o tamanho e a efetividade das propostas econômicas do governo Bolsonaro para os mais pobres e informais, serão as duas peças-chave para avaliar o sucesso e a legitimidade do grupo governante. E não haverá como fazer a escolha por priorizar a saúde ou a economia, em nenhum lugar do planeta (“sorry, Trump”) e muito menos num país tão desigual como o nosso.
A conclusão dos ensinamentos oriundos da crise do coronavírus é a necessidade de melhorar profundamente a política contemporânea. É preciso ter, em primeiro lugar, maior coordenação entre as partes dos sistemas políticos e das esferas de governo. Os Estados Unidos e a Itália mostram o quão elevado é o custo em termos de vidas humanas derivado da descoordenação entre o governo nacional e os subnacionais. O Brasil pode caminhar pelo mesmo caminho se o presidente continuar apostando na guerra contra governadores e prefeitos. Cabe recordar aqui que o Ministério da Saúde fornece as diretrizes gerais e o financiamento de boa parte da política, mas quem executa são os Estados e os municípios, sendo eles, portanto, as principais peças desse quebra-cabeça federativo.
As lideranças políticas internacionais foram colocadas em xeque com a pandemia. E já não há mais lugar para os “outsiders” e suas ideias exóticas nesta crise, pois ficou claro que é necessário combinar expertise técnica, responsabilidade e capacidade de articulação, três elementos que não cabem na prática populista vigente. Para sair desse buraco, tão profundo quanto o da década de 1930, será necessário ter Roosevelts e Churchills, e não Trumps e Bolsonaros.
O coronavírus terá de ser enfrentado, com transparência, evidenciais científicas, planejamento, articulação com os principais atores políticos e sociais, solidariedade com os mais pobres e desapego em relação ao poder. Se prevalecer a irresponsabilidade e Bolsonaro deixar mais gente ser morta pela pandemia, ela irá enterrar o seu mandato.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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