- Folha de S. Paulo
Não é hora de jogar pedras. Nem de fazer elogios descabidos. É hora de ação coordenada e de ter rumo. É este o papel principal de quem exerce a Presidência e demais posições governamentais. O coronavírus não é culpa de ninguém: aconteceu. Como outras tragédias já ocorreram com a humanidade.
Ainda bem que, apesar da tragédia das doenças, dispomos no Brasil de algumas vantagens: as informações fluem e o SUS existe. Além de existir uma indústria farmacêutica que pode rapidamente se adaptar às nossas necessidades. Poucos países (nenhum capitalista e com mais de 100 milhões de habitantes; nós temos mais de 200) possuem um sistema nacional de saúde capaz de atender, de modo universal e gratuito —só no ano de 2019 foram 12 milhões de internações hospitalares e mais de 1 bilhão de consultas ambulatoriais. Nós dispomos dele.
Antes do SUS, havia atendimento médico gratuito para as corporações e para o funcionalismo civil e militar. Os pobres tinham de recorrer às santas casas de misericórdia. Foi na Constituinte de 1988, com o empenho de deputados que eram médicos sanitaristas e de uns poucos que apoiaram as reivindicações deles que houve, finalmente, a decisão de criar o SUS, tomada pela maioria.
Sua posta em prática se deve a ministros como Adib Jatene, César Albuquerque e José Serra e a funcionários do calibre do então secretário-geral do ministério, Barjas Negri.
Mas deve-se, principalmente, à dedicação de médicos, enfermeiros, atendentes e funcionários, tanto do setor público quanto do privado, que foram capazes de dar vida a uma instituição que hoje é básica, o SUS. E às faculdades de medicina, assim como as de enfermagem, que formam profissionais competentes para trabalhar em hospitais que, na ponta, têm qualidade.
Cabe aos governos, diante da crise atual de saúde, atuar. Escrevo governo no plural, pois, além do governo federal, existem os estaduais e os locais. Estão tentando agir. Não é fácil: requer coragem, competência e coordenação. E não requer choques desnecessários com a mídia, mas deixá-la fazer seu papel, importantíssimo, de informar às pessoas o que fazer e aos governos o que ainda falta fazer.
Não cabe, como há pouco ocorreu, assistir a um ir e vir de opiniões sobre se convém ou não o isolamento total, se a prioridade é para garantir a produção e os empregos ou a saúde do povo. Não são metas incompatíveis, há que cuidar dos dois lados, da saúde e da produção. O que não cabe mais, diante de “tanto horror perante os céus”, é discutir se primeiro é isso, depois é aquilo. A mensagem de todos deve se dirigir a todos, sem dar sinais, mesmo que retóricos, de que ao cuidar de um lado vamos nos esquecer do outro.
Foi o que faltou ao presidente. Foi o que fez, corretamente, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Com palavras simples e deixando transparecer sentimento, explicou o que acontece e o que é preciso fazer. Agora, cabe a cada um de nós, uma vez informados pela mídia e pelos agentes de saúde, fazer o que nos corresponde. Uma crise da magnitude da atual não se resolve só pelo governo. Nem sem ele. Mas requer, sobretudo, compreensão e ação de todos.
Não é fácil ficar parado. Teremos de inventar, por um tempo, o que fazer mesmo se estivermos isolados de nossos locais de trabalho, como ocorre muitas vezes. Ou, quando estamos neles, melhor estarmos mais distanciados fisicamente uns dos outros do que habitualmente fazemos.
Por quanto tempo? Ninguém sabe, de ciência certa. Vamos cumprir o devido e esperar que quarentenas e isolamentos não durem muito. Convém que os que mandam digam por quanto tempo e deem esperanças a quem cumpre o isolamento, mas nem eles sabem. Só sabem o que nós todos sabemos, principalmente os mais velhos: se não fizermos nada será pior, e talvez alguns de nós não tenhamos mais a oportunidade de fazer qualquer coisa.
Mas não deixemos de lado a esperança de que dias melhores virão. É boa a ideia de separar um orçamento, “de guerra”, para os dias que correm e manter a noção de que tanto reformas como tetos de gasto só não serão cumpridos pelas circunstâncias. Mas não nos iludamos: os bancos, especialmente os públicos, precisarão soltar dinheiro, o governo há que provê-lo, as contas não vão fechar. Juntos, porém, seremos capazes de ultrapassar os maus momentos que atravessamos.
*Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), é sociólogo e professor emérito da USP.
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