- O Estado de S.Paulo
Ficar em casa é atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade
Quarenta dias depois de iniciado o confinamento domiciliar recomendado pelos órgãos sanitários, duas questões chamam atenção quando se observa a cena brasileira. Ambas são de natureza comportamental.
Em que pesem todos os alertas e apelos médicos, as mortes que se acumulam, uma parte da população não aceita ficar em casa. Movimenta-se, aglomera-se sem necessidade, criando o ambiente de que necessita o vírus para se espalhar. São pessoas que parecem imunes à dor e à solidariedade. Para elas, o problema é sempre dos outros.
Há que fazer um desconto nessa constatação. Muitos simplesmente não podem ficar em casa. Precisam trabalhar, ganhar o pão de cada dia, tocar a vida. Outros não têm como se isolar, vivem em habitações exíguas, sub-humanas, em bairros de densidade demográfica tão alta que as casas parecem formar um monólito indivisível. Sem levar na devida conta essas circunstâncias, não conseguiremos ir além de uma leitura moralista da situação.
Há, porém, uma fatia importante da população que não se enquadra nesses casos. São pessoas que jogam futebol ao ar livre, fazem atividades em grupo, não dispensam os contatos interpessoais. Também não tomam precauções nem procedem com cautela. Enchem os belvederes em dia de sol, levam os filhos para brincar nos parquinhos, frequentam bares, vão às “feiras do rolo” que continuam a se realizar, como na Sé, em São Paulo.
Sabe-se que continuam a ocorrer bailes funk em periferias urbanas. Em Manaus, onde a epidemia tem sido particularmente devastadora, noticiou-se que o Estádio Carlos Zamith, que funcionou como centro de treinamento para a Copa do Mundo de 2014, abrigou uma festa regada a bebidas alcoólicas. Em Blumenau, uma multidão invadiu os shopping centers reabertos pela prefeitura, sendo recebida com aplausos pelos lojistas.
É um assombro que haja tanta indiferença justamente entre nós, com nossa alma latina, sempre pronta a se derramar em lágrimas e a se comover com a desgraça alheia.
Algumas dessas pessoas pretendem-se “ativistas”. Protestam contra o isolamento, fazem carreatas, detonam políticos e autoridades, agitam faixas e bandeiras nos portões de palácios e quartéis. Aceitam o obscurantismo anticientífico e o negacionismo, atacam as instituições e pregam a volta da ditadura, como se isso fosse um desejo da maioria dos brasileiros. Muitas delas são manipuladas por profissionais e influencers de extrema direita. Mas nem sequer se dão conta disso. Deixam-se levar, convictas de que prestam um serviço ao País.
Intriga que tais pessoas não mudem mesmo quando tudo indica que o caminho não é do confronto e da negação dos fatos, quando o presidente, em plena pandemia, dispara uma cretinice por segundo, que só faz piorar a situação. A atitude não tem que ver com posição política ou ideológica. É de natureza psíquica, liga-se a um egoísmo entranhado na alma e na mente.
São pessoas levadas pelo ódio: ao PT, às esquerdas, aos políticos, à democracia. Muitas dizem carregar Jesus no coração, mas estão orientadas por uma raiva doentia, que as cega e embrutece. Estão expostas a um tipo de veneno que inebria e aliena, que vai sendo destilado dia a dia pelo presidente e por seu “gabinete do ódio”, com seus robôs incansáveis e suas fake news. São pessoas reativas, que não pensam. Acreditam que o “mito” está certo, haveria mesmo uma “conspiração” sendo articulada contra ele. No fundo, agem contra a sociedade, a ordem institucional, o Estado como comunidade política de homens e mulheres. Sua mentalidade é de manada, de tribo.
Sair do confinamento não é uma questão econômica, ligada à retomada dos negócios. Só terá sentido se souber se articular com a preservação da vida. A solução não é a saída abrupta de milhões de pessoas sem que o sistema de saúde esteja preparado para a multiplicação dos doentes graves. Porque todos serão infectados, não haverá como evitar. A volta à normalidade é algo muito mais sanitário que econômico. Precisa, por isso, ser planejada com inteligência estratégica, considerando que o vírus permanecerá ativo e agressivo.
Ficar em casa é uma medida defensiva, de proteção à vida pessoal e familiar. Mas é também uma atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade. Com base nela, pode-se retardar a disseminação do vírus para que todos os doentes, em especial os mais frágeis, possam ser atendidos pelo sistema de saúde.
O “ficar em casa” a que estamos sendo conclamados não é uma restrição opressiva. Há como se movimentar um pouco, tomar sol, caminhar. O que não se pode é agir como manada, sem manter distância cautelar mínima e cuidados de higiene. Não é difícil de entender.
Constatar que existem pessoas que não conseguem compreender isso faz com que se desconfie da humanidade dos humanos e da sua capacidade de reagir com lucidez nos piores momentos. Prova que estamos carentes de fraternidade e solidariedade, entregues à crueldade do mundo, como costuma dizer o filósofo Edgar Morin.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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