- Valor Econômico
Entre jogar pra torcida e defender a meta, o dilema brasileiro
Ser convocado para a seleção era a realização do seu maior sonho. Desde as categorias de base era apontado como um dos mais habilidosos de sua geração. Passou por vários clubes, inclusive no exterior, e ganhou muito dinheiro em transações milionárias. Algumas vezes teve a convicção de que seria escalado, mas os técnicos da ocasião escolheram outros para a sua posição - falta de sorte fazer parte de uma safra tão talentosa no futebol brasileiro.
Sabia que essa seria sua última chance de vestir a camisa 10 amarelinha e calar os críticos que diziam que ele estava em fim de carreira. Tinha certeza que ainda não era a hora de pendurar as chuteiras - tinha visão de jogo, sabia combinar raça e técnica, seu chute ainda era potente.
O momento da sua convocação não poderia ser mais propício. A seleção vinha de uma série de fracassos nos últimos anos e o povo queria mudança. O novo comandante prometia fazer tudo diferente e precisava de alguém com experiência para organizar o meio-de-campo e partir pra cima dos adversários. Nas coletivas para a imprensa, o técnico estreante sempre dizia que o escrete nacional seria ele e mais dez.
Logo na primeira preleção recebeu a braçadeira de capitão e pôde sugerir nomes para reforçar o time. Convenceu o chefe de que o ideal seria mesclar a base montada pelo treinador anterior - que mesmo interino havia feito boas escolhas - com ex-companheiros que compartilhavam de sua filosofia de jogo.
Nas entrevistas, esbanjava otimismo. A tática seria jogar na pressão os 90 minutos - “pra frente, Brasil”, como se dizia nos bons tempos em que éramos imbatíveis. Prometia goleadas e títulos. O brasileiro voltaria a sentir orgulho de seu país.
Muitos comentaristas achavam que ele não duraria três meses como titular. Diziam que seu estilo não combinava com o do treinador, cuja carreira fora marcada por um jogo feio, de muita força física e pouca técnica. Mas ele tinha certeza que, uma vez em campo, seriam tantos gols que cairia nas graças da torcida.
Sua estreia não poderia ter sido mais promissora. No primeiro desafio importante, matou no peito, driblou os adversários com facilidade e surpreendeu pela vitória fácil. Alguns invejosos da imprensa até disseram que os méritos eram do treinador anterior, que ensaiou as jogadas e fez boas tabelinhas, mas quem botou a bola pra dentro foi ele. Aliás, um gol de placa, que fez a arquibancada sonhar que seríamos campeões e elevou as cotações do Brasil nas bolsas de apostas.
Ganhou carta branca do comandante. Nos treinos e preleções, o craque explicava que o time tinha que atacar pela direita. Como o lado esquerdo do outro time estava desarticulado, eles deveriam explorar todos os espaços. Jogar em profundidade, fugir da marcação. O Brasil precisava de liberdade, jogar mais solto, girar a bola com velocidade e, assim, estufar as redes.
O problema é que no futebol atual não tem mais time bobo, como diz o Galvão. Os resultados não vinham fácil como ele prometia nas entrevistas na beira do gramado. Em vez de placares elásticos, magros um a zero, às vezes partidas empatadas. O selecionado nacional até tinha domínio no tempo de bola, mas eram poucos os chutes a gol. E como o cronômetro é implacável, o comandante começou a ficar impaciente com sua falta de objetividade, suas fintas e jogadas de efeito - amante do futebol-força, o técnico não gostava de firulas.
Pressionado, o camisa 10 prometia que na próxima partida os resultados viriam, mas não concluía as jogadas. Virou até piada. Os cronistas começaram a dizer que ele estava perdido em campo. Faltava entrosamento, seus companheiros pareciam fora de forma. Alguns acusavam o craque de ter entrado de salto alto. Querendo mostrar raça para o treinador, passou a não tirar o pé em divididas, entrando de sola para não perder o controle da intermediária.
A certa altura do campeonato, porém, o inesperado aconteceu. Sem que ninguém percebesse, um contra-ataque virulento começou a fazer estrago em nossa linha de marcação. O técnico menosprezou os riscos e manteve o esquema de jogo - iríamos sofrer e pagar caro pela sua empáfia e imprevisão. O centroavante estrangeiro avançava com facilidade, deixando nossos jogadores no chão. Explorava todas as brechas, trazendo imenso perigo. Sem saber se era melhor atacar ou defender, nossa seleção levava um humilhante olé.
E foi aí que o técnico brasileiro resolveu mudar a tática. Perdido de um, perdido de mil (ou cem mil). Sentindo que o seu cargo estava ameaçado, decidiu partir para o tudo ou nada. Adiantou a defesa, queria ligação direta com o ataque. Que esquecessem aquela história de atuar com liberdade pela direita - era hora de chutão, canelada e carrinho. Como dizia Dadá, o preferido de seu grande mentor, “não existe gol feio, feio é não fazer gol”.
A virada de jogo deixou o pessoal das cadeiras numeradas de cabelo em pé. Mas o povão da geral aplaudiu a nova forma de jogar do treinador linha-dura. Experiente, o camisa 10 estava preocupado. Parecia o replay de um daqueles vexames da seleção brasileira: o time avançava de qualquer jeito, abria os flancos e deixava a meta desguarnecida- uma estratégia muito imprudente, principalmente porque o nosso saldo de gols já era negativo.
Sem receber a bola, seus “parças” começaram a pedir para ser substituídos. Na entrada do túnel, ao sair para o intervalo, criticou a estratégia do técnico: se o ataque nacional abusasse das pedaladas, seria flagrado em impedimento.
O treinador não gostou nem um pouco da insubordinação. Até então tinha relevado os gols perdidos, as várias vezes em que o camisa 10 foi desarmado quando marcado sob pressão. Pela primeira vez, pensou seriamente em sacá-lo do time.
Cansado de tomar bola nas costas, o craque tem vontade de chutar tudo pro alto; aposentar e desfrutar da riqueza acumulada ao longo da carreira bem-sucedida. Por outro lado, e o sonho de terminar a carreira no auge, levantando a taça de campeão?
Ainda há um segundo tempo inteiro para ser jogado. O camisa 10 sabe que é hora de pôr a bola no chão, recuar e jogar na retranca - bola pro mato que o jogo é de campeonato. O técnico da seleção, porém, só pensa em jogar pra torcida.
Enquanto o time se arrasta em campo, o Brasil inteiro acompanha apreensivo as movimentações no banco de reservas.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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