Até o risco eleitoral criado pela pandemia, emprego e pobres ficaram fora do radar
Deus fez chover em Mato Grosso um dia depois da visita
do presidente Jair Bolsonaro, festejou o general Luiz Eduardo Ramos, ministro
da Secretaria de Governo. “Deus está com nosso presidente e continuará a
abençoar o Brasil”, acrescentou. Os incêndios na Amazônia e no Pantanal são
fenômenos naturais e nenhuma ação humana pode evitá-los, garantiu outro
general, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional. As
críticas à política ambiental brasileira, segundo ele, são ligadas a um “evidente”
movimento internacional para derrubar o governo. O chefe dos generais,
presidente do país abençoado, também cuidou do fogo, pouco depois, em discurso
na Assembleia-Geral da ONU. Na Amazônia só índios e caboclos fazem queimadas,
mas na mata úmida nenhum incêndio se propaga, assegurou.
É isso mesmo o Executivo brasileiro? É mais que isso –
e muito menos que um governo. É preciso acabar com a erotização das crianças e
com a discussão de gênero nas escolas, disse o ministro da Educação, Milton
Ribeiro, em entrevista ao Estado. Mais sociável que Abraham Weintraub, o novo
ministro reafirma prioridades de seu antecessor e também os valores e o padrão
– por assim dizer – cultural de seu líder comum, o presidente da República.
Nenhuma surpresa, portanto, quando o novo ministro se refere a homossexuais
como produtos de famílias desajustadas e descreve a desigualdade como “problema
do Brasil”, fora da responsabilidade de sua pasta.
Educação, igualdade e liberdade são temas
correlacionados há mais de dois séculos, como comprovam as Cinco Memórias sobre
a Instrução Pública, de Condorcet. Um tratamento recente do assunto aparece no
livro Capital et Idéologie, de Thomas Piketty, publicado em 2019. A difusão de
conhecimentos e o acesso às qualificações são apontados por ele como fatores
primordiais, em longo prazo, para a redução das desigualdades em cada país e em
âmbito internacional (páginas 622-623). Condorcet abre seu livro, editado no
fim do século 18, atribuindo à sociedade o dever de proporcionar instrução ao
povo “como meio de tornar real a igualdade de direitos”.
Mas desigualdade, segundo o ministro da Educação, é
problema do Brasil. Não envolvam seu ministério nessa história. Ideia estranha?
Nem tanto, para quem acompanha as ações do grupo chefiado, em Brasília, pelo
presidente Jair Bolsonaro. Problemas do Brasil – ou da maior parte dos
brasileiros – nunca foram incluídos na agenda normal do Palácio do Planalto,
desde janeiro de 2019. De fato, nem mesmo houve mais que uma pauta de
interesses bolsonarianos.
O combate à pandemia, tem repetido o presidente, foi
delegado a governadores e prefeitos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso é
falso, como se observou muitas vezes. Decisões sobre isolamento e etapas de
abertura foram atribuídas aos poderes estaduais e municipais, mas o Judiciário
apontou a “competência concorrente” dos três níveis, sem isentar de
responsabilidade a administração federal.
Evitar essa responsabilidade combina com a negação do
problema. Depois de qualificar a covid-19 como gripezinha, o presidente se opôs
ao isolamento e classificou como inútil o uso da máscara, objeto de piada em
sua transmissão da última quinta-feira, em que aparece ao lado do ministro do
Meio Ambiente. No fim, os dois tentam ridicularizar o toque de cotovelos como
cumprimento.
Covid-19 é assunto dos outros. Devastação ambiental é
história inventada por inimigos do Brasil. Isso inclui brasileiros a serviço de
interesses estrangeiros, como dirigentes dos maiores bancos privados nacionais,
cientistas famosos, membros de organizações ambientalistas e líderes da ala
mais moderna e mais produtiva do agronegócio.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) e estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) são
apontados como contrários ao discurso oficial. Mas nada disso importa. Gente
empenhada em cobrar ações de quem exerce o poder só atrapalha.
Por mais de um ano o presidente desprezou a economia,
deixando o assunto para o “posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes. O impacto
da pandemia nos negócios forçou a revisão de padrões. Foi preciso pensar nas
pequenas empresas, nos assalariados e até nos muito pobres. Antes, nenhuma
dessas categorias havia estado entre as prioridades. Sem operações de socorro,
no entanto, nem os empresários fiéis a Bolsonaro ficariam livres de grandes
perdas.
Essas operações, semelhantes às implantadas em dezenas
de países, atenuaram a crise e tornaram o presidente mais popular até no
Nordeste, região dominada, até aí, por seus adversários. A ajuda aos pobres
virou parte da estratégia da reeleição, item número um da pauta presidencial.
Por que não criar uma Bolsa Família com marca própria? Melhor ainda se um
congressista, como o relator do Orçamento, cuidar do assunto, assumindo o custo
de mexer em verbas muito apertadas.
Teria o presidente chegado até aí se tivesse perdido tempo governando? Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e reeleição em primeiro lugar.
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