Projeto
pode garantir verbas na ponta sem assustar o mercado
Brasília
é uma ilha, costumam dizer os seus críticos quando identificam uma desconexão
do que é discutido no centro do poder com o que ocorre no restante do país. E
aqui vale o alerta: afirmar isso a um brasiliense mais fervoroso pode provocar
discussão séria, briga mesmo. O incauto interlocutor logo é acusado de ser mais
um paulista arrogante ou defender o retorno da administração federal para o Rio
de Janeiro, onde se podia ir ao Parlamento e à praia no mesmo dia. Mas, feito o
protesto, o próprio brasiliense há de reconhecer que a assertiva tem um fundo
de verdade, o qual, inclusive, voltou a ficar em evidência na pandemia.
Durante
muito tempo, uma caminhada pelo Plano Piloto, área nobre e central, de fato
pouco dizia sobre a situação do Brasil e do brasileiro, as mazelas vividas nos
rincões ou os desafios enfrentados nos grandes centros urbanos. Infelizmente, a
crise acabou aproximando Brasília da realidade observada já há muitos anos em
outras capitais e regiões metropolitanas.
O
aumento da pobreza é concreto. Pilotis transformaram-se em abrigos precários
para um número crescente de moradores de rua. Trabalhadores informais, que
nunca foram “invisíveis” para os mais preocupados com os problemas sociais do
país, hoje estão presentes em praticamente todos os semáforos ou
estacionamentos. Buscam formas de ganhar a vida, sem saber que a poucos
quilômetros de distância autoridades negociam o futuro do auxílio emergencial.
Talvez
esse até seria o assunto nas mesas do Piantella hoje à noite, mas o tradicional
restaurante fechou as portas logo no início da crise. Jornalistas também não
poderão mais discutir as conjunturas política e econômica no Moisés -
estabelecimento bem mais acessível, mas não menos tradicional. O bar não fez
jus ao seu nome bíblico e sucumbiu à praga. Não atravessará a pandemia.
Casos
semelhantes são vistos por todo país, porém em Brasília cenas aparentemente
corriqueiras podem dar pista de algo errado que esteja ocorrendo ou alguma má
alocação de recursos públicos em curso. A circulação de parlamentares e
dirigentes partidários por uma determinada agência do Banco Rural passou
despercebida por muito tempo, por exemplo, até que surgiu o escândalo do
mensalão no governo Lula.
Há
poucos dias, observou-se a curiosa movimentação de uma servidora do governo
local num conhecido centro comercial especializado em móveis. Sem maiores
preocupações com quem a ouvia, ela cotava os preços de diversos modelos de cadeira
de escritório e alertava a vendedora: estava com pressa, pois tinha que
concluir a compra do mobiliário antes do fim do decreto de calamidade. A partir
de janeiro, acrescentava, o orçamento seria mais curto. O controle no uso dos
recursos? Mais rígido.
Escancarou-se,
em poucos minutos e num episódio pontual do cotidiano brasiliense, uma das
motivações da possível prorrogação do estado de calamidade pública.
O
governo federal e a base aliada até demonstram sincera preocupação com a
situação das famílias mais vulneráveis. Como era de se esperar, o desembarque
do coronavírus no Brasil levou Executivo e Legislativo a chegarem a um
entendimento em relação à ampliação dos gastos na área social. Os dois Poderes
também decidiram calibrar o valor do auxílio até o fim do ano, mas até agora
não conseguiram encontrar espaço no Orçamento para dar lastro ao novo programa
assistencial que o governo pretende manter a partir de janeiro.
A
despeito do impasse, o presidente Jair Bolsonaro insiste num instrumento capaz
de continuar alavancando sua popularidade. E essa sinalização tem fomentado
discussões, no Congresso e em segmentos desenvolvimentistas do governo, sobre a
necessidade de se prorrogar o estado de calamidade e os mecanismos de
flexibilização das regras fiscais para além do dia 31 de dezembro.
Gestores
estaduais e municipais acompanham com grande interesse. A medida possivelmente
ampliaria também o fôlego financeiro dos prefeitos no início de mandato. Sem a
prorrogação, os gestores tendem a correr para gastar o máximo possível, como
demonstrou a jovem servidora do GDF.
Segundo
publicou o Valor nesta
semana, os municípios podem chegar ao fim de 2020 sem usar grande parte dos
recursos que têm em caixa carimbados para combater a covid-19. Isso representa,
mais especificamente, cerca de metade dos R$ 42,2 bilhões em repasses
extraordinários feitos pela União às prefeituras neste ano, montante que pode
ter que retornar ao governo federal.
As
articulações sobre o Renda Brasil, a PEC do pacto federativo e o Orçamento estão,
portanto, perigosamente se mesclando com os interesses e as necessidades de
curto prazo dos entes subnacionais. Em outras palavras, dos cabos eleitorais
dos deputados e senadores em 2022.
Para
contornar esse risco, está em curso uma articulação no Congresso em favor da
tramitação de um projeto de lei de autoria da senadora Simone Tebet (MDB-MS)
que autoriza o uso, até o fim de 2021, dos recursos transferidos para Estados e
municípios durante a pandemia e que não foram ainda executados.
O
PL já foi aprovado no Senado e pode ganhar regime de urgência na Câmara dos
Deputados, se essa amarração for bem-sucedida. Seu texto original estendia o
prazo para recursos vinculados diretamente apenas à saúde e à assistência
social, mas agora eles poderiam ser usados para qualquer finalidade.
Essa
seria uma saída para se dar efetiva destinação a verbas que já entraram no
radar do mercado e na contabilização da equipe econômica, sem representar um
atentado ao teto de gastos. Na visão dos responsáveis pela iniciativa, os
valores “estão precificados”.
Pela sua viabilidade política, a ideia despertou a atenção de representantes dos prefeitos. Esse é um exemplo de como a ilha pode se conectar ao restante do país com mais responsabilidade.
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