Efeitos
das rebeliões populares dependem da abertura do sistema político para ouvir o
grito das ruas
No próximo domingo, dia 25, os chilenos dirão se querem uma nova Constituição ou se preferem emendar a atual —e, em qualquer hipótese, decidirão quem se incumbirá da tarefa. Na Suíça, por exemplo, o plebiscito seria uma trivialidade.
Longe disso no país andino, onde, há um ano, a política e a vida
cotidiana viraram de ponta-cabeça, sob o impacto de um insuspeitado terremoto
de protestos de rua contra o aumento das passagens do metrô de Santiago.
Assim como em outras explosões pelo mundo afora, um ato administrativo foi o estopim da rebelião contra tudo e todos --a começar, como de costume, contra o establishment político. Sua força mediu-se pelas multidões mobilizadas na capital e nas principais cidades ao longo de cinco meses, até serem vencidas pela Covid-19.
Irrupções populares são sempre imprevisíveis e indecifráveis: somam demandas e sentimentos heterogêneos. Seus efeitos mais duradouros sobre a democracia dependem da reação do sistema político e de sua aptidão para ouvir o grito das ruas, reconhecer o mal-estar que vocaliza e traduzi-lo em reformas institucionais que o tenham na devida conta.
Desde o fim da tirania do general Pinochet, em 1990, duas forças estruturaram e conferiram estabilidade às disputas políticas entre os chilenos, permitindo a alternância no poder entre uma coalizão de centro-esquerda --a Concertação-- e dois partidos de direita. Saídos embora das entranhas do pinochetismo, estes se distanciaram gradualmente da herança da ditadura. Sim, governaram sob a Constituição de Pinochet, porém não raro a emendaram para servir às novas circunstâncias.
Já apresentando sinais de crise, o arranjo desmoronou, com a reforma eleitoral de 2016, que abriu espaço a outras forças políticas, em um sistema de partidos muito mais fragmentado e plural. Este se mostrou capaz de dar uma resposta democrática avançada ao descontentamento: pôs em debate um novo pacto constitucional, dando voz, não só aos partidos, mas a organizações da sociedade.
Por fim, mudou de forma radical e inédita a representação dos cidadãos. O plebiscito desta semana dirá também se o corpo constituinte incluirá representantes da sociedade civil, que, por sinal, já dispõe de espaço próprio no horário político na TV. Em qualquer caso, sua composição assegurará paridade de resultados, ou seja, número igual de mulheres e homens --uma novidade nos parlamentos do mundo.
Logo depois de se tornar primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau foi
perguntado por que seu gabinete era composto paritariamente de mulheres e
homens. "Porque é 2015", explicou. Em 2020, o Chile democrático dá a
mesma resposta.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
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