O
esforço por óbvio faz diferença na vida, mas o mercado remunera a criação de
valor, e isso frequentemente nada tem a ver com o mérito de cada um
Daniel
Markovits lançou um livro chamado “The Meritocracy Trap” (a armadilha
da meritocracia, ainda sem edição no Brasil), com as habituais denúncias contra
o “mito” ou a “farsa” da meritocracia. O argumento central é um velho
truísmo. Nossas
sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e, por óbvio, os
pontos de partida de cada um na vida são muito diferentes.
O
interessante desse debate é que raramente alguém diz quem exatamente defende a
ideia sem sentido de que nossas sociedades sejam meritocráticas. As referências
sempre se dirigem a uma vaga “cultura popular” que preza o mérito, ou recomenda
que as pessoas confiem nelas mesmas e ponham a mão na massa (a cultura da autoajuda é
isso, não?).
Nos
anos 1950, o sociólogo britânico Michael Young escreveu um livro distópico,
“The Rise of The Meritocracy” (a ascensão da meritocracia, também sem edição no
Brasil), tentando imaginar como funcionaria uma sociedade em que as posições de
poder fossem acessíveis aos mais talentosos. A coisa toda era, por óbvio, uma
grande ironia. E um inferno totalitário, apenas isso.
Há
uma confusão elementar nisso tudo. Uma coisa é dizer que esforço e a disciplina
fazem diferença na vida, outra é imaginar que o mérito seja a base sobre a qual
a sociedade distribua recursos e posições de poder. As organizações podem fazer
isto, com base em critérios próprios, mas não a grande sociedade, onde os
critérios são dispersos (ainda bem), e onde o acaso cumpre um papel essencial.
Hayek
matou esta charada quando registrou que o mercado não remunera mérito e sim a
criação de valor, segundo a “votação” que cada um faz, a cada momento, a partir
de suas próprias preferências, quando decide ou não pagar por alguma coisa. E
que a condição de nascimento, assim como uma “mente brilhante, uma bela voz, um
rosto bonito ou mãos habilidosas (...) são tão independentes dos esforços de um
indivíduo quanto as oportunidades ou experiências que já teve”.
E
que seria um inferno, em especial para os menos favorecidos, uma sociedade em
que de fato se acreditasse na lorota de que uma boa renda é prova de mérito e
uma má posição pressupõe sua ausência.
Ao
invés de perder tempo com moinhos de vento, deveríamos discutir com seriedade
qual o parâmetro de justiça plausível em uma sociedade aberta. A melhor que
conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais para todos e uma base
equitativa de oportunidades para cada um. Isso nada tem a ver com igualdade de
oportunidades, que implicaria a eliminação de tudo aquilo que possa servir de
vantagem para alguém na ideia tola de que “a vida é uma corrida”.
O
grande Bernard Williams tratou disso com primor. Igualar oportunidades
implicaria eliminar a influência do dinheiro, e logo da comunidade, da língua,
e por fim da família e das aptidões naturais (e quem sabe também da sorte) da
vida das pessoas. A par de destruir qualquer traço de identidade pessoal, um
exercício de nonsense.
O
que se deve efetivamente oferecer é uma base mais homogênea de oportunidades.
Isso significa muitas coisas ligadas ao direito de crescer com saúde, ser
tratado com a mesma consideração e respeito que os demais e poder escolher uma
(boa) escola onde estudar (direito hoje concedido apenas
aos mais ricos, sob aplausos gerais).
O
prof. Markovits diz que temos que abrir as escolas dos mais ricos para a
frequência dos mais pobres. Ele está certíssimo. Sem colocar os alunos (com
mais ou menos renda) a estudar nas mesmas escolas (e nem me refiro aqui às
superescolas) não vai rolar base nenhuma de oportunidades iguais. Como fazer
isso? Bolsas? Contratos de gestão com o setor privado? É isso que nosso velho
corporativismo mais odeia, não é mesmo?
De
qualquer forma, a ideia de que cabe ao Estado assegurar uma base mais
equitativa de oportunidades a todos é algo que a tradição liberal há muito
incorporou. E não penso que ela seja recusável por um pensamento de esquerda
igualmente atual. Talvez vá aí a base de algum consenso público para além da
querela política e sobre o qual o país tem boas razões para se concentrar.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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