Hoje,
quando os afrodescendentes já representam mais da metade da povo brasileiro,
sua voz ecoa poderosa. Viva o 13 de Maio!
O
óleo “A redenção de Cam” foi pintado em 1895. Um exemplo de nosso realismo
romântico, na passagem do século XIX para o XX, esse quadro é a obra mais
conhecida de Modesto Brocos, pintor espanhol naturalizado brasileiro. Nele, uma
pequena família celebra o nascimento de um bebê, com o pai mestiço orgulhoso do
filho, a mãe mulata lhe dando o carinho de seu colo e a avó negra dando graças
aos céus pelo neto branquíssimo. “A redenção de Cam” ganhou a medalha de ouro
na Exposição Geral de Belas Artes de 1895 e foi usado depois, por João Baptista
de Lacerda, como ilustração de seu famoso ensaio científico, no I Congresso
Mundial das Raças, de 1911, em Londres.
O título do quadro se refere aopersonagem bíblico que, filho de Noé, trai o pai e é amaldiçoado pelo patriarca, sendo condenado a viver sozinho e longe dos irmãos, em outro continente. No Livro do Gênesis, Noé se refere ao filho maldito como “o servo dos servos”. Ele teria, segundo as teorias racistas da época, condenado os descendentes de Cam à cor negra e à escravidão.
A
Bíblia e o quadro de Brocos serviram às teses dos que, a partir da Lei Áurea,
pregavam o embranquecimento da população, do qual João Baptista de Lacerda era
um dos principais e mais respeitados defensores. Além de acoplar à moda de eugenia
numa Europa de emigrantes, era preciso, segundo Lacerda, fazer o Brasil
esquecer a fatalidade de que pessoas de pele escura tinham sido sempre
propriedade das de pele clara.
A
tradição sempre fora a de que pretos e brancos não se entenderiam nunca. Desde
que os navios negreiros partiam das praias africanas, os senhores brancos a
bordo temiam levantes, assim que os escravizados se dessem conta de seu número
muitíssimo superior. E corria, entre os acorrentados, histórias horripilantes
sobre brancos canibais que encontrariam na América. Acho que só Antonio Vieira,
esse lúcido precursor da democracia, ainda tinha coragem de dizer para eles, em
1633: “Sabeis todos os que são chamados escravos, que não é escravo tudo o que
sois”.
Mais
uma vez, a história acabou sendo feita pelas vítimas dela, os escravizados que
foram formalmente libertados sem que lhes dessem nenhuma perspectiva de nada. A
Lei Áurea havia lhes dado a garantia da liberdade que sempre lhes faltara. Mas
não lhes havia produzido nenhum meio de tirar proveito dela.
Desde
que a luta objetiva pela libertação tomara corpo, com líderes como Luís Gama ou
André Rebouças, os senhores de terras se organizaram para exigir do imperador
uma indenização para eles próprios, pobres vítimas da Abolição, pelo prejuízo
que essa lhes causava. Enquanto isso, certos do que ia acontecer com as leis do
país, tratavam de negociar acordos de trabalho com países da Europa, agravando
ainda mais a ausência de ocupação para os que tinham sido escravos.
Quando
a Lei Áurea foi finalmente assinada, os afrodescendentes comemoraram com muito
carnaval na rua. Mas logo se viram expulsos até de suas senzalas, propriedades
dos senhores que precisavam adaptá-las para os imigrantes europeus. Agora só
tinham como espaço de trabalho as estradas vazias ou as ruas das cidades. E
trataram de inventar, para o bem e para o mal, a primeira cultura urbana do
país.
O Brasil foi o último grande país ocidental a decretar o fim constitucional do trabalho escravo. Mesmo assim, depois de fazê-lo, ainda não teve vontade ou coragem de tratar dos novos problemas que essa ação do bem provocou. Desde então, os afrodescendentes vêm se organizando e atraindo o resto da população, independente de cor ou raça do parceiro. Hoje, quando já representam mais da metade da povo brasileiro, sua voz ecoa poderosa. Vale a pena comemorar, mais uma vez, a Lei Áurea e a real redenção de Cam. Viva o 13 de Maio!
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