Valor Econômico
Corte teme dar poder demais a fantoches
políticos
Um ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) certa vez compartilhou uma lição aprendida anos antes com um professor de
direito: de dez em dez anos, um docente deve jogar fora todas as suas fichas de
aula, repensar o conteúdo do zero e reformular seu modo de ensinar. Não deveria
ser diferente, apontou esse magistrado, com a composição da Corte
constitucional brasileira.
O ex-advogado-geral da União, ex-ministro
da Justiça e “terrivelmente evangélico” André Mendonça foi o terceiro jurista
consecutivo a alcançar o STF aos 48 anos. Antes dele, Nunes Marques e Alexandre
de Moraes tomaram posse com a mesma idade, em 2017 e 2020, respectivamente.
Prevista na Constituição, a aposentadoria compulsória aos 75 lhes garante que,
se assim desejarem, serão homens poderosos - capazes de alterar os rumos
políticos da República - por mais de 25 anos.
A perspectiva de longas jornadas nas cadeiras
amarelas do STF ressuscitaram na Corte, como um burburinho que passa de
gabinete em gabinete, um debate que até agora estava restrito aos corredores do
Congresso Nacional: a conveniência de limitar a duração dos mandatos dos
ministros. Não que os atuais integrantes estejam dispostos a entregar seus
cargos antes do previsto, mas conversas internas sugerem haver ao menos uma
simpatia pela “oxigenação”.
Como as nomeações para o Supremo cabem ao presidente da República, os holofotes se voltam às eleições de 2022. Os ministros sabem que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas. Mas a avaliação é a de que, com muitas incógnitas ainda em jogo, a reeleição de Jair Bolsonaro ou mesmo a vitória de Sergio Moro não são hipóteses descartáveis.
Os cenários inquietam a cúpula do Poder
Judiciário, diante das duas vagas que abrem em 2023 com as aposentadorias de
Ricardo Lewandowski e de Rosa Weber. Bolsonaro, que tem o STF como alvo
constante de seus arroubos de fúria, não esconde a intenção de acabar com o
perfil progressista da Corte. “Hoje, tenho 10% de mim lá dentro”, disse
recentemente, referindo-se a Marques - Mendonça ainda não havia sido
sabatinado. “Posso ter quatro [ministros]. Aí você mudou a linha do Supremo.”
Em relação a Moro, pesa a estranheza de que
ele tenha o poder de indicar ao menos dois nomes para compor justamente a Corte
que derrotou sua imagem pública de juiz salvador da pátria, anulando suas
sentenças e declarando a derrocada da Operação Lava-Jato. Segundo um ministro,
seria desmoralizante para o Judiciário brasileiro ter alguém que descumpriu a
regra de ouro da magistratura - a imparcialidade - dando as cartas na
composição do tribunal.
Como a tendência tem sido nomear juristas
com menos de 50 anos (e considerando que o Senado não tem o histórico de barrar
quem quer que seja), paira um desassossego quanto ao risco de se conceder
mandatos tão longevos a juízes que eventualmente se disponham a ser meros
fantoches do presidente.
É verdade que Moraes, Marques e Mendonça
não foram os primeiros ministros jovens a tomarem posse. Aliás, o recorde é do
ministro Dias Toffoli. Indicado por Lula aos 41 anos, ele está em seu 12º ano
de mandato e tem outros 21 pela frente. O próprio decano, ministro Gilmar
Mendes, tinha 46 quando foi nomeado pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso, em 2002. Mas o Brasil era outro: era um país em que o Supremo ainda
era coadjuvante na correlação de forças entre os Poderes.
Hoje promovido a protagonista e com uma
consolidada tradição de decisões individuais, a preocupação com longos mandatos
se acentua. Em 2021, 84% das decisões da Corte foram proferidas por uma só
canetada. O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, anunciou na sexta-feira
“a incrível marca” de 80.869 decisões monocráticas e 15.061 colegiadas ao longo
do ano.
Some-se a isso a prerrogativa que os
ministros têm de pedir vista (mais tempo para analisar os autos, sem prazo para
devolver o processo) ou destaque, interrompendo julgamentos virtuais para que o
debate seja zerado e retomado na sessão presencial. Apesar de triviais e
previstos no regimento, são atos individuais que também podem ditar o ritmo das
pautas polêmicas e, muitas vezes, fazê-las dormir nos escaninhos do tribunal.
A mudança no modelo de indicação e atuação
de ministros do STF tramita no Congresso no âmbito de uma proposta de emenda à
Constituição (PEC). Sem o oportunismo da “PEC da bengala”, defendida por
Bolsonaro apenas para aposentar Rosa e Lewandowski mais cedo, o projeto do
senador Lasier Martins (Podemos-RS) estabelece mandato de dez anos, vetada a
disputa de cargos públicos pelos próximos cinco. O projeto já teve parecer
favorável do relator, senador Antonio Anastasia (PSD-MG), mas, como ele foi
eleito ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), um novo senador será
designado para substitui-lo, podendo ou não aproveitar o material.
O presidente da República continuaria sendo
o responsável pela indicação, mas não de forma tão livre. Para priorizar
indicações técnicas e evitar interferências políticas, ele seria obrigado a
seguir uma lista tríplice elaborada por autoridades jurídicas, como presidentes
de tribunais superiores, procurador-geral da República e dirigentes do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Na sabatina, ao ser provocado a opinar sobre
o assunto, Mendonça disse: “Este debate deve existir, é legítimo e este é o
espaço correto: o Congresso. Isso tem que ser feito com racionalidade, vendo os
prós e contras de um ou outro modelo”. Ou seja, não respondeu. Para quem era um
mero desconhecido de Bolsonaro até 2018, mas demonstrou fidelidade cega a ponto
de chegar ao topo da carreira, era melhor não se comprometer. Para o grupo
político do presidente, a vantagem é ter um interlocutor conservador na Corte
pelo maior tempo possível.
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