Correio Braziliense
Até agora, Bolsonaro mantém uma posição
segura eleitoralmente para chegar ao segundo turno, como principal adversário
de Lula. Dez meses até as eleições são uma eternidade.
Musashi, o livro de Eiji Yoshikawa, em dois
volumes de 900 páginas cada, é um romance publicado no Brasil pela editora
Estação Liberdade, no qual se aprende um pouco sobre a história e os costumes
do Japão antigo, por meio da primeira metade da vida do samurai Miyamoto
Musashi, uma lenda para os japoneses e os praticantes de kenjutsu e outras
artes marciais mundo afora. A obra é inspirada em fatos históricos, mas
romanceada ao misturar personagens reais e da imaginação do autor.
No final de sua vida, com câncer, Musashi se isolou numa caverna da ilha de Kyushu, onde ficou por 1 ano e oito meses, período em que escreveu Gorin No Sho, ou O Livro dos Cinco Anéis, como é conhecido no Ocidente, concluído em 1645, antes de morrer, aos 61 anos. No xogunato Tokugawa, do qual foi chefe militar, o Japão se unificou, todos os senhores feudais foram obrigados a morar em Edo, a capital na época. Os portugueses foram expulsos do Japão, o catolicismo foi proscrito e os holandeses passaram a monopolizar o comércio com o Ocidente, como aconteceu com o Brasil, de 1624 a 1654, ou seja, até à Insurreição Pernambucana.
Notável espadachim, Musashi tornou-se um
grande estrategista com o passar dos anos; nunca parou de treinar e,
principalmente, de estudar, inclusive a caligrafia e a pintura. Numa das
passagens do seu manual militar, o sexagenário samurai ensina que uma luta
somente termina quando se “ultrapassa o fundo” do espírito do adversário. “Em
luta contra o inimigo, você o vence com a vantagem dos mandamentos da arte
militar, mas apenas aparentemente, pois o espírito do adversário continua
mantendo a sua combatividade, e é possível que ele esteja vencido apenas na
superfície, e não no espírito”.
É o que acontece com o presidente Jair
Bolsonaro, candidato à reeleição, diante do absoluto favoritismo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião sobre as
eleições de 2022. Enquanto se arma um “já ganhou” em torno da candidatura
petista, que hoje venceria no primeiro turno, Bolsonaro amarga altos índices de
reprovação, seu governo é pessimamente avaliado e o risco de derrota é tão
grande que até apoiadores como Olavo de Carvalho já dão a causa como perdida.
Mas Bolsonaro parece não estar nem aí, não se sente estrategicamente derrotado.
Por quê?
Há razões objetivas e subjetivas para isso,
digamos assim. Entre as objetivas, as mais relevantes são: (1) o governo é
sempre a forma mais concentrada de poder, mesmo o mau governo, pois, quando
nada funciona, o que ainda não é o caso, arrecada, normatiza e coage; (2)
apesar da inflação descontrolada, da recessão e do desemprego em massa, o
governo detém alto poder de intervenção na economia e escolhe ganhadores e
perdedores, ou seja, tem muita gente ganhando dinheiro com privilégios; (3) a
crise social está sendo lentamente mitigada pela gradativa retomada da economia
informal e de subsistência, enquanto o novo Auxílio Brasil, no valor de R$ 400,
beneficiará 14,5 milhões de famílias, algo em torno de 70, 2 milhões de
pessoas, entre adultos, idosos e crianças, além de ser uma grande injeção de
recursos do centro nas economias das periferias dos grandes centros e das
pequenas cidades.
Salvador da pátria
Entre as razões subjetivas: (1) a captura
do sentimento popular de defesa da família unicelular patriarcal, ameaçada pela
mudança dos costumes, muito bem cimentada pela aliança com os setores
evangélicos; (2) o favorecimento a corporações embrutecidas pela natureza de
suas atividades, além de setores violentos, transgressores e mafiosos, na
economia de acumulação primitiva; (3) a identificação da classe média mais
conservadora com suas ideias reacionárias, que fantasiam o passado de forma
maniqueísta, como o antigo regime militar; (4), finalmente, a crença
compartilhada com seus apoiadores mais fanatizados, de que é um “salvador da
pátria” predestinado, “imbroxável” e “imorrível”, capaz de superar todas as adversidades.
Tudo junto e misturado, por meio do uso
eficiente e sem escrúpulos de fake news nas redes sociais, até agora, Bolsonaro
mantém uma posição segura eleitoralmente para chegar ao segundo turno, como
principal adversário de Lula. Com isso, a oposição não consegue “ultrapassar o
fundo” do espírito combativo de Bolsonaro, que ainda pode lançar mão de sua
milícia política, fortemente armada, durante a campanha eleitoral, para
intimidar e impedir seus adversários de ir às ruas. A outra hipótese, a do golpe
de Estado, fracassou no 7 de Setembro.
Estrategicamente, o que pode derrotar o
espírito de Bolsonaro no primeiro turno é ser ultrapassado por um terceiro
candidato, capaz de catalisar os sentimentos antipetistas da sociedade e os
setores de centro-esquerda e centro-direita que ainda acreditam num candidato
que fuja a essa polarização, como sugeriu o ex-governador capixaba Paulo
Hartung em recente entrevista. A 10 meses das eleições, nenhum dos outros
pré-candidatos — Sergio Moro (Podemos), Ciro Gomes (PDT), João Doria (PSDB),
Henrique Mandetta (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Rodrigo Pacheco (PSD) e
Alessandro Vieira (Cidadania) — encorpou-se o suficiente para isso. Entretanto,
300 dias numa eleição são uma eternidade. E a possibilidade real de vitória de
Lula no primeiro turno, tão antecipadamente, pode funcionar como um fator de
realinhamento das forças mais conservadoras que apoiam Bolsonaro, em busca de
outra opção mais ao centro.
Feliz Natal, dia 30 de dezembro estaremos
de volta.
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