O Globo
“Ao
alcançar o centro do recinto, o iniciante volta-se então para a Rainha e os Tronos
e caminha para dentro do espaço ritual. Ele então se ajoelha, apoiando-se numa
banqueta diante da Rainha, que está de pé sobre a plataforma, em plano um pouco
mais elevado. A Rainha toca o cavaleiro ajoelhado em cada ombro com o lado
chato da Espada do Estado, nomeando-o; ele se levanta; ela passa a fita da
Ordem do Cavaleiro em torno de seu pescoço (isso também é outra inovação
recente); eles apertam as mãos; a Rainha diz alguma coisa apropriada a cada um
dos iniciantes; o iniciante inclina-se, recua andando para trás até sair do
espaço ritual, depois sai para a esquerda. O iniciante então caminha até a
parte de trás para se reunir ao público.”
Meu ilustre colega, Edmund Ronald Leach, de Cambridge, falecido em 1989, assim descreve e analisa a cerimônia do seu investimento como Sir, provando como a antropologia social é um valioso instrumento de entendimento de nossa própria vida social. Os leitores familiarizados com meus trabalhos sabem como tenho seguido esse caminho nos meus livros e aqui no jornal.
Reproduzi esse trecho da análise de um
“rito de mérito” — publicado na revista Mana, vol.6, 1 de 2000 — motivado pelo
que viveu na semana passada Lewis Hamilton, o consagrado automobilista negro,
quando passou de celebridade a Sir. Aliás, uma das consequências desse passo
aristocrático é que o piloto deve ser chamado de Sir Lewis, deixando seu nome
de família. Uma morte e ressurreição simbólicas, como diz Leach.
Agora ele passa a figurar numa lista de
heróis do mundo britânico. Ridículo? Se você acha que existem sociedades sem
ideais, continue elegendo políticos-fachadinhas, prefeitos gatunos e
parlamentares que se apossam dos seus cargos.
Meu ponto aqui é chamar a atenção para o
fato de a pompa enfatizar a sacralidade do cargo. Pois o papel da pompa, que
sempre implica uma entrega pessoal ou um juramento, significa que o incumbente
não “toma posse” do cargo; muito pelo contrário, é o cargo que promove o
renascimento de seu incumbente, limitando ou dissolvendo sua rotineira rede
social. A pompa focaliza (ou legitima, como ensinou Max Weber) a dimensão
pública do cargo, decapitando com a espada real todos os seus elos anteriores.
Como tenho reiterado aqui e na minha obra,
não há teatro sem atores e não há drama se os atores não respeitam e honram
seus papéis!
É crítico acentuar que os rituais de mérito
(ou de investidura, que chamamos de “posse”!) são exemplares nas sociedades que
não admitem a instabilidade, a má-fé, a insegurança e a corrupção (o uso da
impessoalidade do cargo para proveito pessoal, familístico ou ideológico —“aos
amigos, tudo; aos inimigos, a lei!”) — essa pessoalidade das tiranias que nossa
esperteza malandra e ultrarrealista chama puerilmente de “política”. Política
não é burrice, hipocrisia ou contrassenso. É projeto e ideal — é respeito pelo
eleitor, e não o descaso irracional por ele.
Quanto maior a pompa, mais fica simbolizada
a responsabilidade de quem é investido no papel. Pois a magnificência mostra
que, numa democracia, ninguém tem privilégios natos. Desse modo, a potência dos
cargos privilegiados revela suas demandas, não suas facilidades.
Aqui, creio, está uma das diferenças
capitais entre o patrimonialismo nacional, em que existe um hibridismo de
propostas e juramentos burocrático-legais-carismáticos, e um mínimo de pompa
sacramental que isola o lado formal do cargo. No Brasil, há muito mais discurso
populista que um juramento que aprisione a pessoa ao cargo!
O resultado é esse perturbador descompasso
entre presidentes absolutistas, populistas e raramente equilibrados, como foi o
caso de FHC, e o cargo que o engloba. Não como uma mera vantagem
político-partidária, mas com a potência da soberania que harmoniza o país
justamente porque está com e não contra, como ocorre hoje, a vontade popular.
Se você acha tudo isso uma bobagem, esqueça
o dia de aniversário do seu casamento...
P.S.: Gilberto Freyre e Pelé receberam o
título. Não puderam usá-lo por ser estrangeiros.
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