segunda-feira, 20 de março de 2023

Marcus André Melo* - Debate sobre democracia

Folha de S. Paulo

A divulgação recente dos Relatórios 2023 do instituto V-DEM e da Freedom House sobre o estado da democracia no mundo provocou forte controvérsia na comunidade acadêmica e nas instituições multilaterais e de promoção na democracia. São duas instituições de grande influência e respeitabilidade sediadas respectivamente em Gotemburgo e Washington. A Freedom House produz o relatório desde 1973.

Os dois relatórios chegam a conclusões opostas: a Freedom House aponta para uma melhoria paulatina, enquanto o V-DEM alerta que avança o processo do que chama "autocratização" no mundo. O que causou mais perplexidade foi a conclusão totalmente implausível, neste último, de que a democracia teria retrocedido ao mesmo nível de 1986. Naquele ano o Leste Europeu continuava sob o jugo soviético, a Coreia do Sul era uma ditadura militar, Nelson Mandela ainda estava no cárcere e Pinochet ainda estava no poder.

No caso da comunidade acadêmica, Adam Przeworski, considerado o mais importante investigador contemporâneo sobre o tema da democracia, escreveu no Twitter que o relatório do V-DEM era uma mera "jogada publicitária". A crítica se centra em aspectos metodológicos já comentados aqui na coluna, e que vários trabalhos recentes esmiúçam.

Em termos do debate público sobre o assunto, a crítica mais contundente é de Thomas Carothers, diretor do Carnegie Endowment for Democracy, provavelmente a instituição pública mais importante de monitoramento e promoção da democracia no mundo e que edita a revista de referência sobre o tema, o Journal of Democracy. Para ele, a conclusão do V-DEM de que o Canadá, Portugal ou Grécia deixaram ser democracias liberais é estapafúrdia.

Carothers também argumenta que o uso abusivo da expressão autocracia —que intuitivamente remete à ideia de governo absoluto por um indivíduo ou partido— produz forte dissonância no debate público. Como o Chile e Belarus (sob o jugo de Lukashenko há 29 anos) podem estar "autocratizando-se"? Rússia e os EUA supostamente estariam também se autocratizando: seus scores declinam na mesma proporção. O que significa dizer que Dinamarca está se autocratizando, se a probabilidade de que vire uma autocracia é zero?

Já discuti aqui na coluna ao longo dos últimos anos, várias vezes, as consequências do alargamento de conceitos em relação a expressões como morte da democracia e correlatos, refletindo vieses os mais variados. E já antecipei a crítica de Przeworski sobre o suposto "se está acontecendo nos EUA com Trump, está acontecendo em todo mundo". A análise destes vieses por Little e Meng introduz novo rigor analítico neste debate.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

5 comentários:

Fernando Carvalho disse...

A atual fase de desenvolvimento do capitalismo internacional de um cadáver insepulto. Necessita de uma superestrutura nazifascista. E encontrou representantes desse troço em Trump, o boçal e Viktor Orbán. A democracia internacional correu um grande risco, mas por sorte de todos. Essa ameaça, que ainda não acabou, foi debelada. Os três fascistoides mencionados todos já levaram seu pontapé na bunda. Trump de Biden, o boçal de Lula e Orbán de uma mulher. E essa refrega mundial da democracia contra esses esbirros do nazifascismo contribuiu para fortalecer a democracia internacional. Inclusive no sentido do aprofundamento da democracia no sentido de sua ampliação para acolher em seu projeto as causas ecológica, feminista, racista, humanista, etc.

ADEMAR AMANCIO disse...

Parece mentira que Trump e Bolsonaro perderam as eleições,Deus não só é brasileiro como americano também.

Anônimo disse...

Fernando, acreditas mesmo nesta estória de "cadáver insepulto"? O tal "cadáver" se estendeu pela Rússia e China nas últimas décadas, continua desmatando e destruindo florestas no mundo todo, continua ampliando a poluição das águas doces e dos oceanos, continua forte como sempre nos EUA, na Europa, na Austrália e se ampliou pela Ásia. Para um suposto "cadáver", parece mais vivo que nunca.

Fernando Carvalho disse...

Caro anônimo. Você tem razão o cadáver insepulto está muito vivo. Mas aposto que ele será enterrado. O capitalismo demonstrou ser um regime extremamente versátil. Sugou o sangue dos negros africanos durante quase quatro séculos. Depois sugou o sangue dos assalariados até hoje. Afogou em sangue a Comuna de Paris. Derrotou o mundo montado em torno da URSS. Mas a China é uma esfinge a dizer ao capitalismo "Decifra-me ou te devoro". Lá quem manda é um partido único, o Partido Comunista. E a Rússia de Putin libertou o Don Bass na Ucrânia e la surgiram duas "repúblicas populares" (países comunistas). Acho que os países comunistas da 3ª Internacional não eram a solução. O futuro está nas mãos do povo ampliado (o povo mais os índios, os negros os viados e as viadas). Com a manutenção da democracia e sua ampliação. Quanto mais democrática for a democracia mais o povo ampliado prevalecerá e o cadáver insepulto irá aos poucos sendo enterrado. A cada avanço do programa ecológico, a cada avanço das causas humanitárias, significa que uma parte do insepulto foi enterrada. O ritmo desse enterro será dado pela tecnologia da informação. Por isso o lixo nazifascista aposta tanto nas fake news e nas redes sociais. E nós temos que avançar apostando na tecnologia combinada com a verdade.

Anônimo disse...

Concordo contigo, a versatilidade do capitalismo é muito grande e acho que ela permite a ele sobreviver e até se expandir. Também corrigindo algumas das mais graves distorções, ele se tornou mais palatável aos trabalhadores e mesmo aos subempregados e desempregados.