quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Merval Pereira - Pós-Lula

O Globo

Vivemos o que parece ser o epílogo do presidencialismo de coalizão — tal como cunhado pelo cientista político Sergio Abranches—, que perdeu a eficácia e a funcionalidade

Se o Congresso levar adiante a ameaça de derrubar o veto do presidente Lula ao calendário de liberação de emendas parlamentares, estará dado o passo, talvez definitivo, para a ruptura institucional que se vislumbra há algum tempo no tenso relacionamento entre Executivo e Legislativo. As emendas, que serviram como instrumento do Executivo para controlar os acordos no Congresso, mormente no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, agora tornam-se a arma do Legislativo para retirar de seu antigo controlador o poder que lhe resta de ditar os rumos do governo, até administrativos.

Seria uma decisão claramente inconstitucional, que impediria o Executivo de gerenciar o Orçamento no que é possível ainda controlar, já que as emendas hoje são impositivas e o pagamento seria compulsório de acordo com os interesses dos parlamentares, e não os da administração pública. Se o impasse for rompido por uma negociação que mantenha o veto, mas garanta a liberação da verba ainda no primeiro semestre, como querem os parlamentares, teremos superado um obstáculo, mas nada indica que estará superada a crise de relacionamento, pois os parlamentares querem ter controle sobre o próprio orçamento, que não necessariamente corresponde ao projeto político do governo em exercício.

Sem a obrigatoriedade de liberação em datas predeterminadas, restará ainda ao governo a possibilidade de negociar a distribuição dos recursos a seu tempo ou interesse, e é isso que os parlamentares não querem. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) for chamado a dirimir a disputa, estará colocado mais um elemento desestabilizador na relação Congresso-Executivo, o que pode dar à eventual crise institucional um tom mais elevado.

Vivemos, portanto, o que parece ser o epílogo do presidencialismo de coalizão — tal como cunhado pelo cientista político Sergio Abranches—, que perdeu a eficácia e a funcionalidade. Na análise do ex-secretário-geral do PSDB Marcus Pestana, tal coalizão só deu certo no governo Fernando Henrique porque a base da governabilidade era formada por apenas três partidos (PSDB, PMDB e PFL). A pulverização e a dispersão parlamentar começaram posteriormente, e deu no mensalão, petrolão, e no “bonapartismo de confronto” no início de 2019. “Depois disso, veio esse parlamentarismo manco”, diz ele.

Pestana chama a atenção para o fato de o presidencialismo não exigir dos parlamentares a responsabilidade por seus atos, ao contrário do parlamentarismo ou do semipresidencialismo, em que há, segundo ele, “uma convivência dialética entre poderes e responsabilidades”.

O poder crescente do Parlamento sobre o Orçamento e a agenda legislativa não é acompanhado de uma responsabilidade inequívoca pela governabilidade, ressalta Pestana. Ele cita a experiência de Portugal, onde, diante de um impasse grave que põe em risco a governabilidade, o presidente dissolve o Parlamento e convoca novas eleições.

—Foi assim na crise do Orçamento no final de 2021, que dinamitou a geringonça portuguesa; e agora em 2023, com as denúncias de corrupção envolvendo o governo do Partido Socialista (PS).

Aqui não. O presidente tem de negociar a governabilidade a conta-gotas no varejo, projeto a projeto, sem nenhum instrumento contra impasses. Há quem veja nessa disputa de poder a possibilidade de o Executivo recuperar sua força de atração caso a economia continue se expandindo, fazendo com que os parlamentares procurem abrigo sob sua popularidade, como nos velhos tempos. Mas nada indica que as eleições vindouras serão marcadas por rasgos de efusividade governista.

A máquina do Centrão — que controla as emendas e quer agora controlar o fluxo de distribuição de acordo com seus interesses eleitorais — já tem verba suficiente para independer do Executivo. Os vereadores e prefeitos eleitos neste ano formarão a base do que sairá das urnas em 2026, por isso o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, exige que o PT pense no futuro pós-Lula.

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