quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Combate ao crime exige respeito à evidência empírica

O Globo

É lamentável desprezo às câmaras em fardas e louvável iniciativa que reverteu a proliferação de armas

No combate à violência, governos não deveriam abrir mão de políticas públicas de sucesso comprovado. É o caso das câmeras acopladas a uniformes de policiais, estratégia usada com bons resultados no exterior e em pelo menos oito estados brasileiros. Não só para reduzir as mortes causadas pela polícia, mas também para proteger os próprios agentes de acusações infundadas, dando mais transparência às ações contra o crime.

Infelizmente o governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem desprezado os avanços do programa implantado em gestões anteriores. Afirmou que não investirá em novas câmaras nas fardas, sob a alegação de que não oferecem segurança ao cidadão. Ora, os números mostram que, entre 2019 e 2022, seu uso contribuiu para reduzir em 76,2% os civis mortos em operações policiais (nos quartéis onde não eram usadas, a queda foi de 33,3%). Diversas pesquisas científicas corroboram a eficácia da política.

A incoerência fica maior quando se observam os números atuais. No ano passado, primeiro do governo Tarcísio, os civis mortos por PMs em serviço aumentaram 34%, para 333, de acordo com levantamento do portal g1 com base nos dados do Ministério Público. No ano anterior, haviam sido 248, patamar mais baixo já registrado.

Que as evidências devem ser respeitadas fica claríssimo no exemplo de outra política pública bem-sucedida no combate à violência — a decisão, tomada logo no início do governo Luiz Inácio Lula da Silva, de restringir o acesso a armas e munições depois do armamentismo promovido na gestão Jair Bolsonaro. Em 2023, a queda nos novos registros de armamento para defesa pessoal chegou a 82%, menor patamar desde 2004. Mesmo para os quase 21 mil que obtiveram uma arma, a situação se tornou mais difícil. Dos pedidos de registro de porte, 75% foram negados. A questão agora é o que fazer com o arsenal que continua em poder da população civil, estimado em torno de 1 milhão de armas de fogo.

O número é relevante, entre outros motivos, porque muitas armas compradas legalmente por cidadãos bem-intencionados acabam furtadas, roubadas ou extraviadas — e vão parar nas mãos de bandidos, alimentando ainda mais a violência. Nem mesmo o Exército tem conseguido manter seu arsenal em segurança, como provam desvios recentes.

Evidentemente, diminuir as armas em circulação não significa automaticamente diminuir os crimes, pois outros fatores contribuem para a violência. Mas sem dúvida ajuda, como comprovam estudos acadêmicos. De acordo com o Ministério da Justiça, entre janeiro e outubro de 2023, período em que ficou mais difícil o acesso às armas, caíram os homicídios (3,3%), feminicídios (2,4%) e mortes por intervenção policial (3,6%). Como 70% dos crimes são cometidos por armas de fogo, é razoável supor que a política de dificultar o acesso tenha surtido algum efeito. “Estamos provando que menos armas é menos letalidade, menos violência”, disse ao g1 o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli.

O combate à criminalidade exige políticas públicas consistentes e duradouras. Quando bem desenhadas e adotadas com base em evidências empíricas — e não em ideologias ou populismo —, têm eficácia. Sozinha, nenhuma resolverá o problema. Em conjunto, implementadas como ação do Estado, não há dúvida de que dão resultados.

Recorde da balança comercial traduz força do setor privado

O Globo

Empresas de setores mais produtivos e competitivos souberam aproveitar as oportunidades internacionais

Pelo terceiro ano consecutivo, o superávit da balança comercial brasileira bateu recorde. Antes do anúncio dos dados oficiais de 2023, previsto para os próximos dias, a única dúvida é o tamanho do crescimento em relação a 2022. O saldo prévio, para o período entre 1º de janeiro e 25 de dezembro, foi da ordem de US$ 95 bilhões, 54% acima do superávit do ano anterior. O resultado expressivo é consequência do dinamismo das empresas capazes de manter produtividade e competitividade em alto patamar. Com a exceção do petróleo, os outros quatro principais produtos da pauta de exportações (soja, minério de ferro, açúcar e milho) são dominados pelo setor privado.

O desempenho tem levado economistas a prever um cenário de bonança duradoura. Mantidos os saldos positivos na balança comercial, o Brasil criará as condições para o consumo das famílias e os investimentos crescerem acima da variação do PIB sem que haja pressão negativa sobre as contas externas. Foi a experiência do país entre 2006 e 2013, período conhecido pela explosão na demanda global por commodities. O preço dos produtos exportados subiu, o dos importados caiu, e a economia alcançou um equilíbrio mantido até o momento em que o desajuste fiscal do setor público derrubou a confiança.

As causas do superávit de 2023 são distintas. Os recordes registrados em 2021 e 2022 foram impulsionados não apenas pela recuperação depois da pandemia, mas também pelo aumento nos preços ante maior demanda. O desarranjo nas cadeias globais de suprimento (decorrência também da guerra na Ucrânia) provocou uma disparada na cotação das commodities. No ano passado, os preços voltaram a cair.

A queda deu aos exportadores brasileiros a oportunidade de mostrar uma capacidade de resposta fora do comum. Com destaque para o agronegócio, eles compensaram a desvantagem no preço aumentando a quantidade vendida. Nos 12 meses terminados em outubro, o volume embarcado de produtos agrícolas aumentou quase 30%. Analistas veem nessa resposta uma mudança estrutural e preveem vários anos de exportações em alta, independentemente de flutuação de preço. A previsão para 2024 não é um novo recorde, mas um saldo comercial com folga larga, de no mínimo US$ 75 bilhões.

Tal perspectiva deveria levar os defensores da agenda desenvolvimentista a rever sua posição. Eles costumam acreditar que apenas investimentos do Estado são capazes de fazer a economia crescer. É um engano. Como demonstra o desempenho dos exportadores, o Brasil precisa apostar nos setores em que há vantagens comparativas e maior produtividade, caso do agronegócio. As oportunidades devem ser perseguidas pelo setor privado. O papel do Estado é imprescindível, mas como regulador, não como indutor ou impulsionador do desenvolvimento. Nada substitui o conhecimento e a intuição dos empreendedores.

Lula veta calendário de emendas, mas preserva megafundo eleitoral

Valor Econômico

Ainda que com derrotas no Congresso, o governo tem conseguido navegar razoavelmente bem, como indica a aprovação da reforma tributária

O presidente Lula vetou vários pontos da lei orçamentária, procurando preservar a margem de manobra do Executivo, cada vez mais estreita com o apoderamento crescente do Legislativo sobre o montante e o destino dos recursos públicos. O governo escolheu poucos alvos de rejeição, para não parecer afronta ao Congresso, e cedeu em vários outros, respeitando o que foi votado pelos parlamentares. Um exemplo típico de pragmatismo político. O calendário para a liberação das emendas, impositivas ou não, em ano eleitoral, além de trazer problemas concretos de execução orçamentária - a imposição ignoraria o fluxo de receitas para o caixa do Estado -, anularia um instrumento importante de barganha com o parlamento, utilizado por todos os governos desde a redemocratização.

A lei aprovada pelo Congresso estabelecia condições vantajosas para a execução de emendas parlamentares, que atingiram um recorde de R$ 49 bilhões. O governo vetou a definição de piso de 0,9% da receita corrente líquida às emendas de comissões, criadas com dotações de R$ 16,7 bilhões. O Congresso estabeleceu que o empenho (autorização de gasto) das emendas individuais e de bancadas deveria ser feito após 30 dias depois de listadas as propostas de destinação dos recursos, e o pagamento ser realizado até 30 de junho.

Pela LDO, o pagamento das emendas teria prioridade sobre a quitação das demais despesas discricionárias do Executivo. Sua execução das emendas deveria seguir as indicações dos beneficiários e a ordem de prioridade estabelecida pelos autores. As respostas do Executivo para os vetos desse tema foram as mesmas: não há previsão constitucional para se exigir cronograma obrigatório do Executivo, além de ferir sua primazia de definir o cronograma financeiros dos desembolsos, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal. Importante, o presidente Lula vetou a lista de 17 itens de despesas que ficariam livres de eventuais contingenciamentos.

Além disso, o Executivo bloqueou vários canais pelos quais as verbas, de emendas ou não, sairiam das regras legais orçamentárias. É o caso, por exemplo, do veto para que as emendas destinadas ao Ministério de Educação pudessem ser alocadas para entidades privadas filantrópicas ou confessionais, ou da obrigatoriedade de uso de 30% dos recursos do Minha Casa Minha Vida em municípios com menos de 50 mil habitantes. Um outro dispositivo abria espaço para obras com recursos orçamentários em estradas municipais ou estaduais que não são responsabilidade da União.

Com apoio minoritário no Congresso, que ganhou maior poder sobre o Orçamento, o governo comprou, com razão, uma briga sobre a execução de emendas, e impediu que as recém-criadas de comissão estabelecessem um mínimo de recursos para si, como tem as de bancada (1% da Receita corrente líquida) e individuais (2% dessa receita). Com isso preservou a atribuição de definir e executar no orçamento as prioridades nacionais para as quais foi eleito, e evitou no que pôde a pulverização dos recursos em obras paroquiais. Mas tentou algum apaziguamento visando a impedir a queda do veto ao manter intacto o fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões, para o qual tinha proposto pouco mais de R$ 930 milhões.

Essa verba extravagante para eleições municipais, duas vezes e meia os R$ 2 bilhões consumidos no último pleito de prefeitos e vereadores, é praticamente de livre uso das máquinas partidárias. O PL terá a maior fatia dessas verbas e o PT, a segunda, talvez outro fator a explicar sua manutenção do fundão. Ao primeiro, como ao Centrão, interessa aumentar o número de prefeituras sob seu comando, de olho na expansão de suas bancadas no Congresso em 2026. Ao PT interessa reconquistar centenas de prefeituras perdidas desde 2016. A barganha pode interessar a todos os partidos, já que o recorde de emendas está preservado.

O governo Lula manteve acordo proveitoso com o Congresso de maioria conservadora. A união foi selada antes da posse, mediante apoio do partido à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Em troca, recebeu R$ 169 bilhões em gastos adicionais previstos na PEC da Transição. Esse apoio se desdobrou na aprovação do novo regime fiscal, que prevê aumento real de despesas, em substituição ao teto de gastos, que as proibia, e se estabeleceu um modus vivendi de formação de maiorias caso a caso, projeto a projeto. A taxa de sucesso das propostas do governo - razão entre projetos propostos e projetos aprovados - não destoa da de seus antecessores, embora seja pálida comparada à do primeiro governo Lula: 27% ante 60% segundo o Observatório do Legislativo Brasileiro (Folha, 2 de janeiro).

A correlação de forças pode se tornar menos favorável ainda para o Executivo. PP, Republicanos e União Brasil, com 151 deputados e maiores bancadas nas duas Casas, voltaram a conversar sobre a criação de federação partidária (Globo, 31-12). Lira, o fiador de compromissos com o governo, deixará o comando da Câmara em 2025. Ainda que com derrotas no Congresso, o governo tem conseguido navegar razoavelmente bem, como indica a aprovação da reforma tributária. Na segunda metade do mandato, contudo, com a campanha da reeleição já em curso, o jogo político pode mudar.

O menor possível

Folha de S. Paulo

Mesmo com descrédito quanto ao déficit zero, Lula precisa respaldar Haddad

Como se imaginava, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a meta de déficit zero do Tesouro Nacional na Lei de Diretrizes Orçamentárias deste 2024. É igualmente de conhecimento público que a meta se afigura quase impossível e continuará bombardeada pelo partido do presidente da República e pela ala política do governo.

Previsibilidades à parte, a solução a ser dada para o imbróglio tende a definir rumos da administração e da economia do país.

A meta de equilíbrio entre receitas e despesas federais, excluídos da conta os encargos com juros, é objeto de descrédito geral. Isso se dá porque Brasília, em vez de conter a expansão dos gastos, fez a opção de buscar uma arrecadação muito pouco realista.

O Orçamento deste ano põe no papel recursos que somam R$ 2,192 trilhões, o que representa uma alta improvável de 14,8% —10,5% acima da inflação— ante 2023.

Tamanha expansão da receita é difícil política e economicamente, dado que a carga tributária brasileira já está no topo do mundo emergente e se espera um período de desaceleração do PIB.

Analistas projetam valores consideravelmente menores para os ingressos no caixa do Tesouro Nacional —em torno de R$ 2,077 trilhões, segundo pesquisa de dezembro do Ministério da Fazenda.

A se confirmar uma diferença de mais de R$ 100 bilhões em relação à previsão oficial, o governo petista seria obrigado a promover bloqueios massivos de despesas já no início do ano para tentar o déficit zero ou ao menos reduzir o rombo para R$ 28,8 bilhões, o que estaria dentro da margem de tolerância de 0,25% do PIB da regra fiscal.

Assim se entende a pressão do PT sobre o ministro e correligionário Fernando Haddad, defensor isolado do ajuste orçamentário. O partido quer mais desembolsos em ano eleitoral e crê que desse modo haverá estímulo econômico.

Essa visão imediatista é de alto risco no futuro próximo, ainda mais para um governo que já de início promoveu, com a ajuda interesseira do Congresso, uma escalada imprudente de gastos.

Com mais déficit e dívida pública, os juros permanecem elevados e tende a se retrair o investimento privado, sem o qual não há crescimento duradouro do PIB.

Lula, que em pronunciamentos ainda rechaça de modo demagógico a disciplina fiscal, deveria endossar a busca de seu ministro pelo menor rombo possível neste ano. Seu governo deveria se submeter às contrapartidas previstas na lei em caso de descumprimento da meta.

Para resultados mais sustentáveis, será necessária a revisão de regras que hoje forçam o aumento de dispêndios obrigatórios e sacrificam outras áreas do governo.

Menos juridiquês

Folha de S. Paulo

Ação do CNJ para simplificar linguagem do direito pode ser mecanismo de inclusão

É bem-vinda a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça de lançar o programa Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. A ideia é estimular as instâncias da Justiça a desenvolver ações que visem ampliar a inclusão por meio do uso de uma linguagem jurídica compreensível a todos.

Um dos pré-requisitos da democracia é que as comunicações entre os órgãos de Estado e os cidadãos sejam transparentes e eficazes. Mas embora sempre seja possível transformar o chamado juridiquês em um texto mais acessível para os leigos, não é viável eliminar inteiramente o jargão dos autos.

Ainda que nossos operadores do direito venham há séculos se esmerando em formalismos, beletrismos, latinórios e prolixidades de utilidade e gosto discutíveis, jargões profissionais são comuns em todas as áreas do conhecimento. Eles apresentam, de fato, um aspecto corporativista, contudo suas funções não acabam aí.

Jargões existem também porque tornam as comunicações entre os profissionais mais econômicas e precisas. Quando um médico menciona um "infarto com supra" ou um advogado diz que vai "interpor um agravo de instrumento", eles se referem a eventos bastante específicos cuja descrição, em termos leigos, poderia demandar várias linhas de texto, correndo ainda o risco de sacrificar a exatidão.

O desafio, portanto, é adequar a linguagem à situação. Profissionais quando falam entre si podem e devem utilizar o jargão. Quando a comunicação tem como destinatário o público leigo, entretanto, precisa ser mais cuidadosa.

Um médico que não seja capaz de explicar um diagnóstico ao paciente em linguagem que este, considerando sua capacidade cognitiva e nível educacional, possa compreender não é um bom profissional.

No Judiciário, a cobrança costuma ser menor. Mas magistrados, especialmente os que atuam em juizados especiais e na Justiça do Trabalho, onde as partes podem em tese atuar sem advogados, deveriam ser capazes de produzir despachos e sentenças que sejam compreendidos pelos jurisdicionados, sob pena de fracassarem em sua missão principal.

O CNJ acerta ao tentar criar essa consciência. Advogados e membros dos Ministérios Públicos deveriam aderir ao programa. Se não por respeito aos cidadãos, ao menos por critérios estéticos —complicar um texto é a pior coisa que um escritor pode fazer à sua obra.

Uma confusão deplorável

O Estado de S. Paulo

Tarcísio erra ao dizer que câmeras nos uniformes policiais são ineficientes na segurança do cidadão. Além de contrária às evidências, a declaração presume que nem todos são cidadãos

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, informou, em entrevista à TV Globo, que não pretende investir mais nas câmeras nos uniformes policiais, porque, segundo ele, esses equipamentos não melhoram a “segurança do cidadão”. Em seguida, questionado pelo repórter a respeito da possibilidade de aumento da truculência policial como consequência da falta de câmeras nos uniformes, o que resultaria em insegurança para os cidadãos em geral, o governador disse que “o cidadão” está “mais preocupado” com o roubo de celulares e com sequestro relâmpago, entre outros crimes.

Com essas declarações, o governador paulista faz uma deplorável confusão entre segurança pública e proteção contra o abuso cometido por agentes do Estado em nome da segurança pública. Ora, as câmeras não foram implementadas para melhorar a segurança, tarefa esta que é do policiamento ostensivo e preventivo, feito com base em inteligência e treinamento. O objetivo do programa de câmeras nos uniformes é o de documentar a ação policial para eventual responsabilização dos agentes em caso de violência excessiva, o que tende a inibir as ações truculentas.

Há um outro aspecto, ainda mais perturbador, na resposta do governador. Segundo se depreende de seu discurso, aqueles que padecem nas mãos de policiais violentos são cidadãos de segunda classe, que não fazem jus nem aos direitos assegurados pela Constituição nem aos investimentos do Estado na redução da violência policial.

No exótico trade-off proposto por Tarcísio de Freitas, só haverá recursos para melhorar a segurança dos cidadãos realocando-se o dinheiro hoje destinado ao programa que visa a assegurar que os cidadãos tenham como se defender, na Justiça, de eventuais abusos policiais.

É lógico que governar é fazer escolhas, uma vez que os recursos públicos são finitos, mas é espantosa a naturalidade com que o governador Tarcísio de Freitas, que se apresenta como um gestor técnico, tenha se permitido o raciocínio obscurantista, típico do bolsonarismo, de que o sucesso das ações de segurança pública só será possível com o desinvestimento no programa de câmeras nos uniformes policiais, como se um e outro fossem excludentes.

Esse deveria ser um debate ocioso a esta altura. Por todos os aspectos avaliados, as câmeras nos uniformes policiais representam uma das políticas públicas mais eficientes implementadas nos últimos anos na área de segurança pública. Seus dois grandes objetivos – reduzir o abuso policial e produzir elementos de provas para os inquéritos policiais e os processos penais – têm sido atestados em vários levantamentos. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a eficiência dos equipamentos na decisão, proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que obrigou o uso das câmeras pela polícia do Rio de Janeiro.

A mentalidade simplista exposta na fala do governador de São Paulo ajuda a entender por que o Estado tem sido tão pouco eficiente na prevenção e na repressão do crime. O poder público tem reiteradamente se negado a ver o óbvio e a estudar os assuntos, preferindo ações demagógicas e populistas de curto prazo.

Contrária às evidências e à Constituição, a declaração de Tarcísio de Freitas é também incoerente com seu discurso ideológico. Não faz nenhum sentido que um político pretensamente liberal considere um desperdício investir na transparência da atuação estatal. A saudável e civilizada desconfiança que o liberalismo nutre em relação ao poder do Estado também se estende, por óbvio, ao poder da polícia. Não existe Estado virtuoso, em nenhum âmbito, sem transparência e sem controle.

Num país violento como o Brasil, a polícia é imprescindível. Todos os cidadãos, sem exceção, infelizmente precisam cada vez mais dela. E as câmeras nos uniformes são um poderoso e eficaz instrumento para que policiais continuem a ser policiais, atuando como policiais, e não como os justiceiros pelos quais clamam aqueles que se consideram cidadãos de primeira classe.

A vacina desafia o negacionismo

O Estado de S. Paulo

Números do Ministério da Saúde mostram crescimento de vacinas do calendário infantil em todo o Brasil, vitória ainda incompleta contra a onda negacionista que vimos na pandemia

Os anos críticos da pandemia de covid-19 deixaram no Brasil a triste marca dos 700 mil mortos pela doença e a trágica cultura do negacionismo – aquela impulsionada por uma legião que não só se recusava a seguir as recomendações da ciência, como difundia desinformação e inverdades sobre supostos riscos e inutilidade das vacinas. Pelos números revelados recentemente pelo Ministério da Saúde, o País pode estar, enfim, revertendo a tendência negacionista que se proliferou nos últimos anos e abalou os indicadores de vacinação.

Segundo o governo, oito tipos de vacinas recomendadas no calendário infantil apresentaram aumento de procura entre janeiro e outubro de 2023, comparado com o mesmo período de 2022.

Registraram crescimento os imunizantes contra hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, DTP (difteria, tétano e coqueluche) e tríplice viral 1.ª dose e 2.ª dose (sarampo, caxumba e rubéola). Também houve aumento na cobertura da vacina contra a febre amarela. Em todas elas, a alta ocorreu em todo o Brasil.

Ainda que os dados sejam preliminares, trata-se de uma notícia auspiciosa. Ao apresentá-los, a ministra Nísia Trindade evidentemente comemorou os resultados. Convém reconhecerlhe os méritos, tanto dela quanto do presidente Lula da Silva: depois de anos de quedas sucessivas na cobertura vacinal, o Ministério da Saúde lançou o Movimento Nacional pela Vacinação, no qual se incluiu a adoção do microplanejamento, o repasse de recursos para ações regionais nos Estados e municípios, e o programa Saúde com Ciência, iniciativa interministerial voltada para a promoção e valorização da ciência nas políticas públicas de saúde. O governo buscou ainda revigorar neste primeiro ano o Programa Nacional de Imunizações, abalado pela gestão anterior.

Nada mal quando boa parte do País ainda se recorda do rosário de queixas, ironias e negações do então presidente Jair Bolsonaro diante das vacinas. Ao longo de quase dois anos de pandemia, Bolsonaro se posicionou diversas vezes sobre o tema e se mostrou claramente contrário à imunização. Numa delas, em janeiro de 2022, chegou a dizer que as mortes de crianças pela covid-19 no Brasil não justificavam a vacinação, por causa de seus “efeitos colaterais adversos”. Em outra, afirmou que o efeito da vacina no público infantil seria uma “incógnita”. Não raro optou pelo deboche diante do medo, das incertezas e até mesmo da busca acelerada pela vacina. “Se você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher ou algum homem começar a falar fino, eles (os fabricantes de vacinas) não vão ter nada a ver com isso”, disse ele, em dezembro de 2020, num dos momentos críticos.

O avanço é notável, mas a própria ministra da Saúde reconheceu que ainda há um longo caminho a percorrer. Mesmo com o aumento, as coberturas vacinais não alcançam, em nível nacional, a meta preconizada pelo governo, de 95%. Alguns imunizantes chegam próximo a 80%; outros ainda se aproximam da casa dos 70%. Mas sair da espiral descendente já é motivo para alívio, sobretudo para um país que, até Bolsonaro, foi referência internacional no controle de doenças imunopreveníveis. Afinal, é do Brasil um dos maiores programas de vacinação do mundo, instituído na década de 1970, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde e razão da vitória contra algumas doenças, incluindo a poliomielite.

Os novos dados são igualmente importantes porque 2023 mostrou que, embora tenha mudado de patamar, a covid-19 veio para ficar. Já não se trata de uma emergência de saúde pública, mas o vírus continua circulando, causando mortes, alterando a circulação de outros vírus respiratórios e provocando surtos fora de época. Uma suposta normalidade na convivência com a doença e o espírito negacionista ainda deixam sequelas: em junho do ano passado, somente 13% dos adultos haviam recebido o reforço com a vacina bivalente; em dezembro, somente 17%, índice que é ainda mais baixo entre crianças de até cinco anos de idade. Um tema, portanto, que ainda desafia governos e famílias.

Futuro ameaçado

O Estado de S. Paulo

Persistência do número de nem-nem em uma década mostra que descaso com os jovens é uma doença crônica do País

Serão muito limitadas, para não dizer nulas, as chances de o Brasil experimentar os benefícios de um crescimento econômico mais justo e sustentável num futuro não tão distante enquanto milhões de jovens que compõem a chamada geração nem-nem, isto é, aqueles que não estudam nem trabalham, continuarem a ser negligenciados pelo Estado.

Um estudo realizado a pedido do Estadão/Broadcast pelo economista Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), projeta que essa desatenção aos jovens de 25 a 29 anos que estão fora das salas de aula e do mercado de trabalho pode implicar uma perda de até 10 pontos porcentuais no potencial de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do País nos próximos 30 anos.

Segundo o IBGE, em 2022 havia cerca de 10,9 milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos (faixa etária usada pela instituição para classificar os nem-nem) sem estudar nem trabalhar. Desse total, 36,45% tinham entre 25 e 29 anos, vale dizer, tinham idade suficiente para, em condições normais, assumir o custeio, no todo ou em parte, do domicílio em que viviam. “Eles (os nem-nem) são numerosos e jovens”, disse Tafner ao Estadão. “São pessoas que vão deixar de produzir por toda uma vida.”

O potencial de crescimento do PIB brasileiro ao longo dos próximos 30 anos é de 40%, de acordo com a projeção do IMDS. Como 22% dos brasileiros na faixa etária entre 25 e 29 anos fazem parte do grupo dos nem-nem, como aponta Tafner, o aumento da riqueza do País tende a ficar limitado a 30% no período avaliado se nada for feito agora para reverter o quadro de desalento entre esses jovens em idade produtiva.

A união entre Estado e sociedade para resgatar a esperança de milhões de jovens que não encontram estímulo para estudar ou trabalhar já seria, por si só, um imperativo moral, haja vista que muitas das causas dessa mazela crônica do País decorrem de profundas injustiças sociais. Mas, como indica o estudo do IMDS, reduzir expressivamente o número de nemnem se impõe, também, como uma agenda pragmática. Afinal, quanto menos cidadãos fora das escolas ou do mercado de trabalho, mais o País tem a ganhar com o crescimento potencial de sua riqueza, o que, em tese, beneficiaria toda a sociedade.

Esse diagnóstico, porém, malgrado sua gritante obviedade, está longe de gerar consensos que se traduzam em políticas públicas voltadas aos nem-nem. Entre os países analisados pela OCDE, o Brasil segue estagnado há uma década entre os dez piores no porcentual de nem-nem entre a população, ocupando a sétima posição nesse ranking ignóbil. Em 2012, 20% dos brasileiros entre 15 e 29 anos eram nem-nem; em 2022, o porcentual se manteve inalterado.

O abandono desses jovens, evidentemente, perpassa governos de diferentes matizes políticos. Mas, sendo o presidente Lula da Silva um autodeclarado defensor dos interesses dos brasileiros mais vulneráveis, é sua obrigação olhar com atenção para esses números, que não só travam o crescimento nacional, como nos envergonham.

Exército retoma o comando dos CACs

Correio Braziliense

Entre 2018 e 2022, houve um crescimento exponencial do número de CACs, que passou de 117.467 para 673.818, superando o número de policiais militares na ativa em todo o país

O Exército voltou a emitir autorização para novos clubes de Caçadores, Atiradores Esportivos e Colecionadores de Armas (CACs). Após tomar posse, um dos primeiros atos assinados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro do ano passado, foi um decreto suspendendo a abertura de mais CACs e transporte de armas com munição por civis. Era o começo da revisão da política de flexibilização do acesso a armas de fogo e munição no país, inclusive aos artefatos até então restritos à Polícia Federal e às Forças Armadas.

Até o ano passado, o licenciamento de CACs estava com a Polícia Federal. Em dezembro último, a responsabilidade retornou ao Exército. Para alguns analistas, foi uma manifestação de confiança do presidente nos militares. Entre as mudanças estabelecidas pelo Exército, destaca-se a redução do prazo de renovação da licença do porte de armas, que passa de 10 para três anos. Os CACs em funcionamento terão até 2026 (ano-limite) para obter nova licença de funcionamento.

Entre 2018 e 2022, houve um crescimento exponencial do número de CACs, que passou de 117.467 para 673.818 — número superior ao de policiais militares na ativa em todo o país (406 mil) e ao de militares das Forças Armadas (360 mil). O número de armas em circulação chegou a mais de 1,5 milhão. Institutos, como Igarapé e Sou da Paz, estimam que, considerando os acervos particulares, o total de artefatos bélicos em poder de civis chega a 3 milhões. Durante 2022, período da corrida eleitoral, as taxas de mortes violentas intencionais (MVIs) declinaram de 24 para cada 100 mil habitantes em 2021, para 23,4 em igual universo populacional. Ou seja, passou de 48.431 (2021) para 47.508, a maior queda desde 2011, o primeiro ano da série histórica do Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP).

Em 2023, a tendência de queda do número de MVIs se manteve. Entre janeiro e outubro, 34.156 pessoas foram mortas intencionalmente — 3,8% menos do que em 2022, que registrou 35.487 vítimas, segundo os dados oficiais. Mas não há garantia de que a redução seja progressiva, à medida que novos clubes poderão ser instalados no país. Isso não significa que colecionadores, caçadores e atiradores esportistas sejam integrantes de grupos criminosos.

Mas há de se reconhecer que a flexibilização, anteriormente vigente, colaborou para que ocorressem fraudes. Pelo menos 25 clubes foram alvo de investigações. Armas compradas legalmente pelos integrantes foram desviadas e apreendidas em mãos de marginais de grupos criminosos. No ano passado, em média, foram registradas 126 ocorrências mensais de roubos e furtos de armas em CACs. Os fatos impõem ao Exército e aos demais órgãos de repressão ao crime uma vigilância constante e rigorosa, a fim de que os CACs não se tornem fontes alimentadoras da violência e do crime.

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