quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Felipe Salto* - A privatização do Orçamento público

O Estado de S. Paulo

A falta de planejamento, que já se pode classificar como um problema antigo do País, combina-se agora com o uso descarado dos espaços fiscais pelo Legislativo

Sob uma ótica relativamente moderna, o processo orçamentário deve orientar-se por resultados, e não pela disputa por recursos e carimbos. Contudo, a ausência de planejamento tem levado à privatização do Orçamento público, guiada por interesses cada vez menos associados ao desenvolvimento econômico integrado da Nação. Nem os programas orçamentários são avaliados e melhorados nem o espaço discricionário é usado adequadamente.

Uma análise da proposta orçamentária da União para 2024 pode ser útil. A Lei Orçamentária Anual ainda não havia sido sancionada até o envio desta coluna para os editores. Por isso, trabalho com as informações do relatório exarado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso.

Nele, constata-se despesas totais de R$ 5,4 trilhões para 2024. Desse montante, R$ 2,7 trilhões são gastos financeiros, incluindo os pagamentos de juros e o refinanciamento da dívida pública vincenda. A saber, na presença de déficit, o governo precisa recorrer ao mercado para financiá-lo e, ainda, precisa substituir os títulos públicos que estão para vencer. Essas despesas têm de ser previstas em orçamento. Deixar de pagar juros ou honrar os valores dos títulos na data do vencimento equivaleria a dar o calote. Não é uma opção.

Dos R$ 2,7 trilhões restantes, as despesas de Assistência, Trabalho e Previdência Social e os precatórios somam R$ 1,45 trilhão. Os orçamentos da Saúde e da Educação totalizam R$ 370 bilhões, enquanto a Defesa Nacional, as Relações Exteriores e a Segurança Pública ocupam cerca de R$ 100 bilhões. As transferências para Estados e municípios e os recursos aportados pela União no Fundeb, além de outros encargos especiais, circundam os R$ 600 bilhões. As funções ligadas à atividade legislativa e judiciária somam algo como R$ 65 bilhões. Outros R$ 70 bilhões destinam-se à Agricultura, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia e Transportes. O restante, cerca de R$ 85 bilhões, distribui-se em todas as outras funções do gasto (Cultura, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Energia, Esportes, Administração, Comunicações e outras).

Esses primeiros grandes números mostram que, excluído o já comentado custo da dívida pública, o gasto federal concentra-se nas despesas previdenciárias, nos programas sociais e nas transferências para os entes subnacionais (R$ 2,1 trilhões). As despesas com a folha salarial, por sua vez, que estão contabilizadas nos dados anteriores dentro de cada função do gasto, estão previstas em cerca de R$ 400 bilhões na proposta orçamentária de 2024, quando somadas.

Podemos agregar esse montante às despesas enumeradas no último parágrafo, totalizando R$ 2,5 trilhões, e comparar o resultado ao total de R$ 2,7 trilhões. Essa diferença, de cerca de R$ 200 bilhões, é um cálculo inicial para a margem de manobra ou o grau de flexibilidade do Orçamento. O problema é que esse montante ainda precisará dividir-se entre: emendas parlamentares, custeio da máquina pública, investimentos e um adicional com Saúde e Educação, para fins de cumprimento dos valores mínimos constitucionais. A bem da verdade, a Saúde exerce uma pressão maior, neste momento.

O montante destinado às emendas parlamentares, após as inovações da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), ficou ainda mais alto. Juntas, as emendas individuais, de bancada estadual e de comissão já se aproximam de 4% da receita corrente líquida ou algo como R$ 53 bilhões. O Executivo só pode cortar esse valor se cortar as outras despesas discricionárias na mesma proporção. O Executivo vetou o adicional para as emendas de comissão; a ver se o Congresso não derrubará o veto. Mesmo que parte das emendas vá para a Saúde, colaborando para o cumprimento do mínimo constitucional, o espaço fiscal é bastante exíguo. Calculamos, na Warren Investimentos, que a máquina pública requer pelo menos R$ 90 bilhões para não haver paralisação de serviços essenciais (o chamado shutdown).

A elevada rigidez orçamentária tornou-se praticamente impeditiva com o avanço do Parlamento sobre a já raquítica porção de gastos discricionários. As emendas, como se sabe, tendem a pulverizar os recursos públicos, em prejuízo das obras de infraestrutura. A saída foi oferecer aos deputados e senadores a alternativa de abrigar suas emendas sob o guarda-chuva do PAC, com um carimbo específico no Orçamento (mais um). Não vai funcionar. Já se tentou no passado. É como desmontar o quebra-cabeça, espalhar todas as peças pela Praça da Sé e, depois, sair recolhendo uma a uma.

A falta de planejamento, que já se pode classificar como um problema antigo do Brasil, combina-se agora com o uso descarado dos espaços fiscais, pelo Legislativo, como se este, e não o Executivo, devesse governar. Essa inversão é extremamente preocupante e precisa ser freada o quanto antes.

As transferências especiais, chamadas “emendas Pix”, com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 105/2019, têm permitido a destinação dos recursos orçamentários diretamente aos municípios, sem o devido controle. Agora, por meio da LDO, tentou-se obrigar o Executivo a priorizar o gasto de outra parcela das emendas.

A Presidência reagiu e vetou o desvario. Mas é pouco. O processo precisa ser interrompido e, em seguida, revertido, antes que não reste pedra sobre pedra do espírito do legislador constituinte na matéria orçamentária.

*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e o primeiro diretor executivo da IFI (2016-2022).

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