quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Simon Johnson e Daron Acemoglu* - Offshore sujo ameaça a democracia

Valor Econômico

Restrição a paraísos fiscais e cobrança mais por transparência nos fluxos financeiros transnacionais deve ser uma prioridade política do G7 em 2024

As democracias em todo o mundo enfrentam duas grandes ameaças: uma crise de legitimidade e regimes autoritários cada vez mais agressivos. O que liga ambos e os tornam muito mais perigosos é o pernicioso efeito das transferências de dinheiro sujo, especialmente aquelas que circulam por meio de paraísos fiscais offshore e jurisdições com excessivo sigilo financeiro. Restringir estes paraísos fiscais e exigir mais transparência nos fluxos financeiros transfronteiriços deveria ser uma grande prioridade política para todos os países do G7 em 2024.

A ameaça interna à democracia é uma erosão da legitimidade. Nas economias industriais, como EUA e Europa, as novas tecnologias, o aumento dos fluxos de capitais transfronteiriços e a redução das barreiras ao comércio aumentaram a produtividade média e criaram o crescimento econômico ao longo do último meio século, mas os benefícios desse crescimento não foram amplamente compartilhados. A desigualdade nesses países aumentou drasticamente desde meados da década de 1970, com milhões de pessoas sentindo-se agora deixadas para trás.

O apoio à democracia está sendo minado pela crença de que o jogo econômico é “manipulado”, com as pessoas que já são poderosas e privilegiadas ganhando mais - por vezes às custas do resto. Embora essa crença possa ser exagerada, está de acordo com a realidade da evasão fiscal.

Os paraísos fiscais permitem que as pessoas ricas não apenas construam a própria riqueza essencialmente isenta de impostos, como também exerçam poder econômico e político longe de olhares indiscretos e sem qualquer responsabilização. Uma lista de paraísos fiscais inclui entre os dez principais Estados do Caribe, pequenos países amplamente respeitados, como os territórios ultramarinos britânicos (Ilhas Virgens Britânicas, Bermudas e Ilhas Cayman), Holanda, Suíça, Luxemburgo, Cingapura e os Emirados Árabes Unidos.

EUA e Reino Unido também são cúmplices. Suas regras de sigilo financeiro permitem que uma extraordinária quantidade de dinheiro estrangeiro (e ilícito) encontre abrigo (os EUA lideram esse Índice de Sigilo Financeiro).

Engenharia financeira que permite evasão fiscal alimenta crença de que jogo econômico é "manipulado" e corrompe a democracia. Dinheiro sujo também fortalece regimes autoritários ao facilitar apoio a candidatos e manipulação da opinião pública

Surgiu uma indústria multibilionária, que emprega alguns dos advogados, contabilistas e consultores mais brilhantes do mundo, focada em ajudar os ricos e os sem escrúpulos. Os paraísos fiscais são particularmente úteis para pessoas que possuem riqueza ilícita derivada de subornos, roubo e outras formas de corrupção. Ser capaz de ocultar a identidade das partes em qualquer transação financeira é um requisito fundamental para operar um refúgio bem-sucedido.

Esse formato de engenharia financeira corrompe a democracia. Pior ainda, agrava a segunda grande ameaça que enfrentamos: o fortalecimento dos regimes autoritários. O dinheiro sujo offshore torna mais fácil apoiar candidatos, manipular a opinião pública e persuadir pessoas a votarem em um ditador.

O dinheiro sujo dos oligarcas russos vem sendo há muito tempo um dos pilares da economia e do sistema político do país. As estreitas relações de Vladimir Putin com fontes de dinheiro obscuro foram bem documentadas.

Menos amplamente apreciada é a forma como as transações não transparentes permitiram à China construir um vasto império global de influência. Só agora estamos enxergando quanto os países de baixa renda, especialmente na África, devem a várias entidades apoiadas por Pequim. Da mesma forma, o Partido Comunista teria supostamente “investido bilhões de dólares” na desinformação global em todo o mundo. Isso inclui esforços centrados nas recentes (e provavelmente futuras) eleições nos EUA.

Tornou-se também dolorosamente evidente que uma grande quantidade de dinheiro flui do Irã para organizações como o Hamas, o Hezbollah e os houthis no Iêmen que estão agora lançando mísseis contra navios comerciais no Mar Vermelho. Quase todo esse financiamento iraniano passa através de obscuros canais, incluindo (de acordo com autoridades dos EUA) entidades na Turquia e no Iêmen.

Fechar esses canais seria difícil, mas a forma mais eficaz de combater o dinheiro obscuro - e o seu financiamento do autoritarismo, da criminalidade e do terrorismo - seria reprimir as dezenas de paraísos fiscais que existem no mundo inteiro. Fazer isso fortaleceria a arrecadação de impostos nas democracias e reduziria os recursos disponíveis para regimes autoritários.

Ironicamente, vários desses paraísos fiscais estão em risco devido às alterações climáticas e exigem assistência internacional para lidar com a potencial subida do nível do mar e com tempestades devastadoras. Se esses Estados insulares e outras jurisdições desejarem participar de mecanismos de ajustes justos e razoáveis (como financiamento climático ou perdão de dívida), financiados em parte pelo G7, terão de cumprir com adicionais requisitos de transparência.

Um elemento-chave precisa ser uma extensão das regras de “conheça seu cliente” a todas essas jurisdições, apoiada por apropriadas sanções penais. Especificamente, é necessária uma completa divulgação às autoridades fiscais do G7 sobre quem possui quais ativos e quem faz quais pagamentos a quem.

Infelizmente, alguma evasão fiscal é legal, devido unicamente ao poder de lobby dos ultra ricos e poderosos consultores e contadores, que sem dúvida argumentarão que as empresas produtivas irão se mudar para outros lugares se as oportunas brechas forem fechadas. Esta situação deveria ser combatida com um princípio simples que deveria ser compartilhado por todo o G7: os lucros das empresas são tributados proporcionalmente ao local onde as vendas ocorrem.

Por exemplo, se você mudar sua sede (ou propriedade intelectual) para outro país, ainda deverá pagar impostos nos EUA com base em suas atividades comerciais nos EUA. O acordo do G7 sobre um imposto mínimo global sobre as corporações foi um passo na direção certa nesse caso, mas ainda há muito mais a se fazer.

Na era da inteligência artificial, deveríamos esperar que muitos dos ricos se tornassem consideravelmente mais ricos. Presumivelmente, também utilizarão ferramentas de IA para evitar impostos de forma mais eficaz. Nos atuais acordos internacionais, isto será fácil de fazer. No entanto, a IA também pode ajudar a descobrir a evasão e a fuga fiscais, bem como fluxos de dinheiro incomuns, que muitas vezes são ilícitos.

Para os barões da tecnologia que falam continuamente sobre a utilização da IA para o bem, eis aqui um desafio: apoiar a rápida implementação de novas ferramentas baseadas em IA para reprimir a evasão fiscal e os paraísos fiscais. (Tradução de Anna Maria Dalle Luche)

*Simon Johnson, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor da Sloan School of Management do MIT e coautor, com Daron Acemoglu do livro Power and Progress: Our Thousand-Year Struggle Over Technology and Prosperity,

*Daron Acemoglu, professor do Instituto de Economia do MIT. Copyright: Project Syndicate, 2024. www.project-syndicate.org

 

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