Valor Econômico
Dinâmica perversa de acesso ao crédito traz
prejuízos ao país e precisa ser revertida
Dever bem é bom. Contribui para que as micro,
pequenas e médias empresas invistam, cresçam e empreguem. Dever bem é uma
questão mal resolvida no Brasil. Por um lado, o Sistema Financeiro Nacional é
tecnologicamente sofisticado e o acesso a serviços e produtos bancários é alto.
Por outro, sua serventia no crédito é inadequada, com impactos adversos no
bem-estar do país.
O que preocupa é que não se avança. Desde
janeiro de 2019 a relação crédito/PIB para pessoas jurídicas está em 20%. Nesse
período, observou-se uma adição de 437.277 micro e pequenas empresas
negativadas pelo Serasa, totalizando 5.821.694 de negativações - um recorde
histórico.
A esse número deve acrescentar-se parte das negativações para pessoa física, que aumentaram em 9.645.760, totalizando 71.822.149 cidadãos com nome “sujo”. Microempreendedores Individuais (MEIs) acessam o crédito por meio da pessoa física, assim como avais pessoais de empresários a empréstimos para suas firmas.
A qualidade do crédito caiu, o saldo do
cartão de crédito rotativo e parcelado aumentou quatro vezes mais do que o
saldo total, gerando dívidas impagáveis que são onerosas. Demandam estruturas
internas, e empresas de cobrança, advogados externos e custas do Judiciário que
têm que ser remunerados. Todos perdem.
A inadimplência tem como consequências o
fechamento de milhares de empresas e a retomada de milhares de veículos e
imóveis dados em garantia com a destruição de riquezas e de postos de trabalho,
todos os meses. Uma parte pequena da inadimplência se deve a fatores pontuais,
a acidentes na operação dos negócios. A maior causadora é a adoção de um
paradigma obsoleto.
É praticamente o mesmo da época da inflação
alta. A função da intermediação financeira mudou, a tecnologia avançou, a
economia é outra, a concorrência é diferente, o sistema de pagamentos evoluiu,
o acesso é mais fácil e o número de relacionamentos financeiros se multiplicou.
Todavia se insiste em mais do mesmo.
As altas taxas são atribuídas à inadimplência
alta. A causação é outra, é o paradigma equivocado. Não é por falta de
competência da equipe do Banco Central. A implantação do open banking, do Pix e
do Drex demonstram uma capacidade operacional excelente. A sua independência
ficou corroborada na questão da redução da taxa Selic.
O entulho inflacionário é um problema de
quase 30 anos. Há mais de dez indexadores de operações de crédito (TR, TJLP,
TLP, Libor, Selic, IGP-M, IPCA, IPCC, TCR, TRFC e outros), moeda remunerada,
redesconto míope, compulsórios draconianos, foco no curto prazo,
direcionamentos, tributação do crédito, ausência de regras de precificação e
falta de transparência.
Piorando o quadro, a oferta de crédito é
regressiva, onera mais as micro, pequenas e médias empresas, em razão de custos
unitários fixos a serem diluídos. Muitos países dão tratamento privilegiado aos
tomadores menores. No Brasil, a situação é oposta. O problema é agravado por
conta da tributação, que é maior para os pequenos, por conta do PIS/Cofins.
A obsolescência do paradigma pode ser
ilustrada com o pedido de tabelamento de prazos para o parcelado sem juros por
algumas instituições. Quanto menor for o prazo, maior é o peso da dívida e
menor a capacidade de tomar empréstimos. Em outras palavras, estão propondo
reduzir o potencial de crescimento do crédito.
Um diagnóstico usado é que o problema é a
concentração e são dados destaques para o papel dos bancos estatais e das
instituições menores. Todavia, o Bradesco empresta mais para micro, pequenas e
médias empresas do que todas as 812 cooperativas de crédito do país somadas e
do que qualquer um dos bancos estatais.
Outro exemplo é o Desenrola. É um avanço no
sentido de que é uma medida para diminuir o número de negativados, tirando-os
da armadilha da dívida. Mesmo se todos os negativados fossem positivados, algo
desejável, em pouco tempo o quadro voltaria por não eliminar a causa das
negativações, a disfuncionalidade da oferta de crédito.
Uma oportunidade perdida para melhorar o
quadro seria um aprimoramento, a parametrização e a normatização da Lei
14.181/2021, a “Lei do Superendividamento”, concebida para tirar consumidores
da armadilha da dívida. Paradoxalmente, a lei também favorece banqueiros. Foi
parametrizada equivocamente e não foi nem aprimorada e nem normatizada.
Essa lei, com alguns ajustes, conseguiria
celeremente limpar nomes e ajudar a organizar a vida financeira de consumidores
e de micro e pequenas empresas, por meio de renegociações em bloco, com todos
os credores, e o estabelecimento de parcelas e prazos viáveis. Reduziria ao
mínimo cobranças onerosas e infrutíferas. Todos sairiam ganhando.
Outra medida que se destaca pelo pouco
alcance é a Resolução Conjunta nº 8 de dezembro de 2023. A norma dispõe sobre
ações de educação financeira a serem adotadas pelas instituições financeiras. É
meritória pelas intenções, mas teria mais eficácia se complementada com duas
medidas.
Uma é parametrizar as informações
financeiras. São complexas demais. Taxa ano, taxa mês, custo efetivo ano e
custo efetivo mês são usados para informar a taxa de uma mesma operação. A
proposta seria uma só medida para facilitar a compreensão. A segunda é informar
o usuário sobre seu cadastro e avaliação de risco. Funcionaria como uma
educação financeira aplicada.
Outro retrocesso é a proposta de criação das
Letras de Crédito do Desenvolvimento do BNDES, com previsão de benefícios
tributários. Os recursos seriam usados em financiamentos destinados ao
desenvolvimento. Seria mais razoável dar benefícios tributários às micro e
pequenas empresas tomadoras de empréstimos no setor financeiro.
O ponto do artigo é que há uma dinâmica
perversa que é possível reverter. Quanto maior a inadimplência, maiores são as
taxas, mais curtos são os prazos e mais difícil é o acesso ao crédito. Na
média, as perdas do sistema financeiro são 9% maiores do que o lucro. Em uma
intermediação em que perdem as empresas, perdem os bancos e perde o país.
Urge mudar o paradigma.
*Roberto Luis Troster é economista
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