O Globo
É muito provável que os brasileiros de baixa
renda percebam a diferença (para menos) nos gastos com produtos e serviços
essenciais
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao
entregar no Congresso Nacional o calhamaço de 300 páginas e 500 artigos que
compõem a regulamentação da reforma
tributária, chamou a atenção para o potencial de crescimento
econômico dela decorrente. A simplificação e a digitalização que virão com o
novo sistema podem fazer o Produto Interno Bruto (PIB) crescer de 10% a 20% ao
longo do tempo. Faltou mencionar os dividendos políticos que o governo pode
colher com medidas que, tudo indica, promoverão mais justiça tributária e,
consequentemente, aliviarão o bolso dos mais pobres.
Faz décadas que a tributação brasileira sobre consumo é criticada pela regressividade. Significa que, quanto menos se ganha, mais se paga. Injustiça define. A emenda constitucional promulgada em 2023 não é livre de assimetrias. Afinal, ainda há setores privilegiados com exceções, impedindo que a alíquota média fique abaixo dos 26,5% ora estimados. Mas é muito provável que os brasileiros de baixa renda percebam a diferença (para menos) nos gastos com produtos e serviços absolutamente essenciais. Nada trivial num país em que um em cada quatro lares enfrenta algum nível de insegurança alimentar; e onde mais da metade dos domicílios em situação severa — fome, portanto — tem renda domiciliar per capita inferior a meio salário mínimo.
No Projeto de Lei que chegou ao Congresso, a
equipe econômica propôs a formalização do cashback. É literalmente dinheiro
pago em impostos devolvido ao contribuinte de baixa renda. Quem estiver no
Cadastro Único com renda domiciliar per capita abaixo de meio salário mínimo
terá de volta 100% da CBS, o imposto federal, cobrado do botijão de gás; metade
do valor incidente sobre contas de luz, gás encanado, água e esgoto. Nos demais
produtos, 20% de CBS e IBS (impostos estadual e municipal) retornarão para os consumidores.
No café com jornalistas, terça-feira no
Planalto, o presidente da República usou a economia para explicar a perda de
popularidade recente do governo. A receita de Lula para superar o mau humor do
eleitorado é reduzir o preço da comida ou aumentar os salários. Devolver o
ganho real do salário mínimo foi promessa de todas as campanhas presidenciais
do mandatário, incluindo a última. A regra de correção já mudou e, desde o
início do terceiro mandato, o piso já aumentou R$ 110. Foram R$ 18 a mais em
maio de 2023 e R$ 92 em janeiro passado. Boa parte do valor foi tragado pela
inflação dos alimentos no primeiro trimestre.
A desoneração da cesta básica nacional e a
aplicação de alíquota reduzida em outros alimentos devem diminuir o preço de
alimentos que flutuam muito ao sabor das condições climáticas, do custo dos
combustíveis e do frete, das cotações no mercado internacional. Arroz, feijão,
farinha de mandioca, óleo de soja, leite, raízes e tubérculos, farinha de
trigo, açúcar estarão livres de impostos após a reforma; são itens que pesam
mais na cesta de consumo dos mais pobres. Carnes, peixes, queijos, sucos e
polpas de frutas sem açúcar e aditivos terão desconto de 60% na tributação. O
Ministério do Desenvolvimento Social propôs desonerar o frango, mas a Fazenda
incluiu as proteínas animais na alíquota reduzida.
Demais alimentos pagarão a alíquota-padrão.
Bebidas alcoólicas e açucaradas, basicamente refrigerantes, estarão sujeitas ao
Imposto Seletivo, a taxação adicional, com outros produtos que degradam meio
ambiente (combustíveis, automóveis) e saúde (cigarros). Houve pressão de
autoridades de saúde e organizações da sociedade civil pela tributação maior
dos alimentos ultraprocessados, caso de comida pronta, como lasanhas e pizzas,
salgadinhos, biscoitos, balas, guloseimas. Em janeiro, o British Medical Journal
tornou público estudo que associa 32 doenças ao consumo de ultraprocessados,
incluindo câncer, problemas cardíacos e pulmonares, diabetes, perturbações da
saúde mental e morte precoce.
Por ora, o que a Fazenda fez foi deslocar os
ultraprocessados para a alíquota cheia e aplicar aos alimentos in natura a
desoneração. Na exposição de motivos, o governo afirma que itens saudáveis
foram privilegiados para induzir boas práticas de alimentação. Houve algum
esforço para seguir recomendações do Guia Alimentar para a População
Brasileira, do Ministério da Saúde. No início do mês, a Fiocruz divulgou estudo
sobre as crianças brasileiras estarem, ao mesmo tempo, mais altas e obesas. Os
pesquisadores analisaram 5,7 milhões de crianças, de 3 a 10 anos, que foram
divididas em dois grupos, nascidas entre 2001-2007 e 2008-2014. A faixa mais
nova ganhou 1 centímetro sobre os mais velhos, em ambos os sexos. A obesidade
saiu de 11,1% para 13,8% entre os meninos e de 9,1% para 11,2% entre as
meninas. Se o ganho de altura reflete melhorias das condições de vida, o
aumento da obesidade preocupa. O estudo cita “novos padrões na dieta, com
destaque para o papel dos ultraprocessados” como causa, bem como comportamento
sedentário e inatividade física.
— Há certa frustração pelos ultraprocessados
não terem sido incluídos no Imposto Seletivo. Margarina está na cesta básica,
provavelmente alguns bolos, biscoitos e salgadinhos vão entrar na alíquota
reduzida. Mas a maior parte dos itens está exposta ao imposto cheio. Isso tende
a tornar a alimentação saudável mais barata, mais atraente, se a lei for
aprovada como está — diz Marcello Baird, coordenador de Advocacy da ACT
Promoção da Saúde, uma das organizações mais ativas em defesa da saúde pública
no país.
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