O Estado de S. Paulo
Uma economia cada vez mais complexa e um mundo político marcado pela fragmentação fazem das mudanças do sistema tributário um ótimo campo para a reflexão
A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de
Lei Complementar (PLP) que regulamenta a Emenda Constitucional 132/2023, que
modificou radicalmente a tributação sobre bens e serviços na economia
brasileira. A proposta proveniente do governo federal foi a base do
substitutivo aprovado, que segue para o Senado Federal, podendo retornar à
Câmara, em caso de modificações.
A leitura que muitos fizeram sobre as
modificações que a Câmara dos Deputados propôs ao texto do PLP 68/2024, na
forma do substitutivo, apontou para a desfiguração completa da proposta de
reforma tributária. Muitos chegaram a apontar que a política deturpou a
proposta que os técnicos formularam.
Não acho que seja relevante tomar o partido de algum lado dos críticos. Mas é crucial avaliar o processo de mudança dos pilares do sistema tributário e a forma como a decisão política é conduzida na tramitação de um projeto que afeta tantos interesses. Uma economia cada vez mais complexa e um mundo político marcado pela fragmentação fazem das mudanças atuais do sistema tributário um ótimo campo para a reflexão.
De toda forma, é crucial ter em mente que a
proposta de reforma tributária é composta por aspectos de grande importância e
que trazem uma modernidade de que o País ainda carece. Nunca é demais citar
suas virtudes: apropriação da receita pelo local onde o consumo é realizado,
desoneração das exportações, retirada da tributação sobre o investimento. São
bandeiras que técnicos e políticos empunharam por décadas.
É necessário, no entanto, compreender as
vulnerabilidades e saber em que ponto residem. Não basta criticar os interesses
ou denunciar a ação política como mácula. Primeiro, porque defender posições e
recursos financeiros é o dia a dia da humanidade há eras. Segundo, porque a
política existe para harmonizar posições divergentes. Onde essa harmonização
fracassa, os movimentos do Estado e da sociedade sofrem a paralisia derivada da
insegurança.
Chega a ser surreal que já tenhamos uma
reforma tributária aprovada, mas as alíquotas do Imposto sobre Bens e Serviços
(IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) não sejam conhecidas. Há
hipóteses, mas preços de venda e compra de insumos não são realizados na base
de hipóteses. A absurda incerteza gerada pela limitada informação leva a uma
agudização dos temores dos empresários que são responsáveis pela produção.
Não é demais lembrar que a proposta da
reforma trazia um vício de concepção: a alíquota de 25% para todos. Se todas as
empresas operassem com a mesma margem de lucro e tivessem a mesma condição de
repassar tributos a preços, não haveria problemas. Mas esse não é o caso, o
poder de mercado é diferente, entre setores diferentes e entre empresas do
mesmo setor. Em certos casos, a continuidade das operações será inviável com a
elevação da tributação.
Não seria necessária nenhuma capacidade
profética para antever a guerra das alíquotas reduzidas. Mas os propositores da
reforma, ao teimar numa alíquota única, perderam a capacidade de arbitrar o
processo, no sentido de uma estrutura de porcentuais mais racional. Vale dizer,
deixaram à política todo o ônus de adequar a proposta à realidade econômica.
O mesmo raciocínio vale para a Zona Franca de
Manaus. A proposta de reforma tributária simplesmente se omitiu sobre o tema.
Mas não é possível fechar os olhos para uma realidade de décadas com um marcado
conteúdo de articulação do território nacional. Na falta de uma proposta
técnica mais bem concatenada, restou aos políticos encarar a realidade.
Que temos um novo sistema tributário sendo
construído não há dúvida, mas causa espanto ver um discurso de neutralidade na
carga tributária frente ao absurdo que está sendo promovido numa área tão
importante quanto o saneamento. A reforma está transformando a tributação sobre
o setor no triplo do que é atualmente. O consumidor deverá pagar uma conta 18%
maior, porque a atual incidência de PIS/Cofins de 9,25% será transformada em
IBS e CBS de, no mínimo, 26,5%.
Outro aspecto que não mereceu atenção devida
é relativo ao impacto das alíquotas reduzidas na apuração do tributo a pagar.
Quando uma empresa compra insumos com 26,5% de IBS/CBS embutidos, há um
creditamento desse montante. Como o PLP é omisso na redução do crédito aos
níveis da alíquota reduzida, a maior parte das empresas beneficiadas pela
alíquota reduzida simplesmente não pagará nada. Esse aspecto deteriora todas as
condições de se calcular uma alíquota geral consistente com a arrecadação
necessária.
Aqui vale colocar um aspecto que vem sendo
negligenciado. Há um evidente açodamento de setores do Congresso Nacional para
a aprovação da reforma, como se fosse um troféu. Mas não é possível deixar de
notar que o sistema tributário é fruto da realidade e a ela se amolda. As
regras e consensos precisam amadurecer no campo da realidade. Não há oposição
entre técnica e política. Ao contrário, a boa decisão política, a correta
arbitragem dos interesses conflitantes, só é possível se sustentada por um bom
arcabouço técnico.
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