Folha de S. Paulo
Nos EUA, a candidatura de Kamala Harris
parece avivar chamas da democracia
"A gente se move facilmente no que é grande e distante / difícil é apreender o que é próximo e singular", ironiza um epigrama do austríaco Franz Grillparzer. É outra luz de compreensão para o momento político norte-americano, em que a candidatura de Kamala Harris parece avivar chamas da democracia em meio ao seu declínio incipiente na maior potência mundial. Para o escritor angolano João Melo, a eventual vitória de Harris será boa para a sociedade americana e para o mundo, não por qualquer razão geopolítica, mas pelo "efeito borboleta" nos demais países.
O raciocínio é vizinho ao do epigrama, pois
se atém a uma singularidade, deixando na sombra o "grande e
distante", isto é, a geopolítica imperial. Essa é a dimensão em que
circula o slogan trumpista "Maga"
("torne a América novamente grande"), que só parece algo de novo
quando se esquece que o mote de Reagan era"America is back again", ou
seja, "a América está de volta". Mero delírio cinematográfico de conforto
à nação fragilizada pela derrota no Vietnã, acompanhada à distância televisiva
por um povo cujos filhos precisavam se drogar na cena de guerra para aceitar
que estivessem morrendo por nada.
Mas um delírio autopublicitário, que obtém
confiança paradoxal, "aquela que se dá a alguém em função de seu fracasso
ou de sua ausência de qualidades" (Jean Baudrillard, em
"América"). Nada de credibilidade real, e sim crença sectária nas
profecias de um chefe qualquer. Desde Reagan, a América estaria atravessando o
que Baudrillard chamou de "histeresia de potência", isto é, um efeito
que continua depois que a causa desapareceu e se desenvolve por inércia. Trump,
puro efeito de tevê, é imagem dessa potência mítica e publicitária, agora
impulsionada por redes protofascistas.
Por trás dessa grande ilusão, está a
realidade da aliança do complexo militar com o capitalismo financeiro. Se
eleita, Harris nada poderá fazer para alterar o capitalismo
bélico, assim como nada puderam Obama ou Biden. Pelo contrário,
estimularam a simulação imperial, incrementando guerras e matando inimigos
mundo afora. Foram, porém, operadores do "efeito borboleta", que é o
percebido como próximo nos países às voltas com instabilidades democráticas.
Neles, o discurso democrata de Kamala Harris,
por mais ambíguo que seja, ainda oferece o melhor da América, a sugestão de
liberdade política, que faz a diferença entre o horror do grande e a
normalidade do singular. Para quem vive em espírito público de qualidade
negativa, movido a ódio e baixarias, é uma oferta confortável. Trump, claro, é
a obscenidade da cena primitiva americana. Se eleito, não será apocalipse
nenhum, mas um "flatus" desagradável da impotência moral da potência.
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