O Globo
Mundo atual precisa de um mínimo de retidão
moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz
Sábado, 23 de junho de 1934. O telefone toca
na casa do poeta Bóris Pasternak em Moscou. É a secretária de Josef Stálin,
líder supremo da União Soviética pós-revolucionária. O camarada queria dar uma
palavrinha. A histórica ligação registrada pela KGB durou cerca de três
minutos, e as perguntas formuladas por Stálin vieram de chofre, sem introito:
— O que você acha de Mandelstam?
— O que se fala sobre a prisão dele nos
círculos literários?
Stálin se referia à detenção, um mês antes,
do também poeta Osip Mandelstam. Autor de um ácido poema contra o líder,
Mandelstam o recitara privadamente para um grupo de 14 intelectuais amigos —
entre eles, Pasternak. Este último admirava o colega modernista, porém
considerava desnecessária e perigosa para todos a crítica a Stálin. Pego de
surpresa, o autor de “Doutor Jivago” e posteriormente Nobel de Literatura
(1958) conseguiu apenas articular uma resposta genérica sobre o estilo
literário de cada um, resposta essa de que se arrependeria o resto da vida:
— Nós somos diferentes, Camarada Stalin. Ele
é modernista, enquanto eu sou de outra tendência. Nada posso lhe dizer sobre
Mandelstam — respondeu.
— Só isso? Esse é o máximo de lealdade que
você demonstra a um amigo? Você é um péssimo camarada, Camarada Pasternak —
retorquiu Stálin antes de desligar.
O escritor ainda tentou se reconectar com o ditador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.
Esse é o tema do livro “Um ditador na linha”
(Cia. das Letras, 2024), em que o autor albanês Ismail Kadaré analisa múltiplas
versões do telefonema para refletir sobre a relação entre poder e política,
totalitarismo e liberdade de expressão, ditador e poeta. Além da fonte primária
— a gravação feita pela KGB —, existem outras 12 versões baseadas na memória do
que intelectuais russos da época — como Anna Akhmátova, Ilya Ehrenburg e Isaiah
Berlin — ouviram do próprio Pasternak.
Por que evocar esse episódio agora? Porque os
tempos andam bicudos, e nunca é demais lembrar quanto o mundo atual precisa de
um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para
além do próprio nariz. No auge da Segunda Guerra Mundial, o escritor americano
John Steinbeck garantia a seu editor que todas as bondades e heroísmos do mundo
haveriam de ressurgir, apenas para ser novamente derrotados. “Não é que o mal
vá vencer”, escreveu ele. “Isso nunca acontecerá, o mal apenas não morre.”
Em tempos de intolerância galopante, a
palavra não oficial (seja ela falada, escrita, cantada ou pensada) é vista como
ameaça. E, uma vez farejada, é preciso higienizá-la, por subversiva.
Levantamento recente do jornal The Washington Post detectou 662 exemplos de
alteração no vocabulário de 14 agências federais sob Donald Trump, alterando a
comunicação em 8 mil sites do governo. A palavra “diversidade” foi banida, não
terá substituto, na esperança, talvez, de assim fazer desaparecer também a
comunidade LGBT+, as diferenças de gênero, raça e cor. “Mudança climática”
agora atende pelo nome de “resiliência climática”. “Direitos Humanos”, “aumento
de desigualdades”, “promoção de justiça social” ou “violação de direitos civis”
já estão na linha de tiro. O ideal imaginado de uma América grande, branca e
macho?
Já se escreveu aqui que palavras são
acontecimentos, elas fazem coisas, mudam coisas, transformam tanto quem as
pronuncia como quem as ouve. Governos autoritários ao longo da História sempre
procuraram encurtar o vocabulário oficial, simplificar ao máximo as palavras de
ordem, os diktats, ucasses ou as ordens executivas de agora.
Em seu livro sobre a emergência de novos
autocratas (“Autocracia, Inc.”), a jornalista Anne Applebaum cita um memorando
interno do Partido Comunista Chinês intitulado “Sobre o estado atual da esfera
ideológica”. O documento de 2013 listava os principais perigos a ser
enfrentados pelo presidente Xi Jinping.
No topo da lista vinha a “democracia constitucional ocidental”, seguida por
“direitos humanos universais”, “independência da mídia”, “independência
judicial” e “participação cívica”.
Passados 15 anos desde a circulação desse
documento, a China de
Xi Jinping já pode se concentrar noutras preocupações, pois, na toada atual, é
o próprio Trump que parece estar empenhado em enterrar a democracia
constitucional tal qual a conhecemos.
O amanhã dessa distopia em curso nos foi
exibido dias atrás em cena no Salão Oval da Casa Branca. De pé e à vontade,
envergando boné, capote preto e camiseta, estava a criatura Elon Musk,
centro das atenções. Vez por outra ele levantava do chão sua indócil cria de 4
anos, cujo nome de batismo é X Æ A-12, para acomodá-lo nos ombros. Sentado e
algo acabrunhado estava o 47º presidente dos Estados Unidos.
Novos tempos.
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