A repetição de sequestro de ônibus no Rio de Janeiro, tendo como resposta a ação perigosa da polícia, inquieta ao mostrar que, 11 anos depois da primeira ocorrência, não houve mudança no modo como a polícia age. Ao manter sua maneira de operar, ela espera que os bandidos se intimidem, não ela. Na verdade, é a população que se intimida cada vez mais ao se dar conta de que a polícia não conhece a criminalidade que supostamente combate nem se conhece no tipo de sociedade a que serve.
No sequestro do ônibus 174, em 2000, os passageiros foram mantidos como reféns durante horas. Terminou com a morte de uma das passageiras, que estava sendo usada como escudo pelo sequestrador, após disparo imprudente e de altíssimo risco de um policial. Nessa semana, também foram tiros da própria polícia que vitimaram passageiros, feitos reféns por quatro jovens armados. Entre a ousadia dos criminosos e a imperícia policial fica a população, despreparada para enfrentar surpresas como essas. Nos dois casos, passageiros dos ônibus sinalizaram para a polícia que havia anormalidade dentro do respectivo veículo. Agiram impulsivamente e não necessariamente de maneira adequada.
Em ambos, os respectivos motoristas abandonaram os passageiros e escaparam. Teria sido diferente se eles tivessem sido treinados para permanecer no veículo. Eram os únicos que poderiam avaliar a gravidade da situação e fazer a primeira tentativa de mediação com os bandidos. Vítimas em pânico, bandidos em pânico e polícia em pânico não constituem uma boa combinação para evitar o pior.
Nas duas ocorrências há indicações de uma criminalidade de amadores, metidos em ação para cujo desenrolar não estão preparados. Mas também de uma polícia que age no improviso, tão amadora quanto os bandidos que combate. As polícias brasileiras são movidas ainda por ampla e respeitável intuição, baseada na experiência empírica. Isso nem sempre é suficiente em situações concretas e anômalas como essas, num cenário de condutas imprevisíveis.
Os casos sugerem outra questão: o evento como episódio de um encadeamento de fatos envolvendo criminosos e polícia. No caso anterior, o sequestrador e assassino era sobrevivente da chacina da Candelária, sete anos antes, quando seis menores e dois adultos, moradores de rua, foram mortos por policiais militares por vingança em relação a delitos pequenos. O sequestrador do 174 deu o troco sete anos depois da chacina. A polícia não aprendeu com seu erro de 2000 e o repetiu agora. Entre os três momentos transcorreu o tempo de uma vida, coisa de uma sociedade que acumula, potencializa e agrava problemas. E não acumula experiência, aprendizado e competência para reverter o círculo vicioso da violência e da criminalidade que aí se revela. Ao contrário, temos débitos acumulados, cobrados com juros altos no momento seguinte.
Num país como o Brasil, o combate à violência e à criminalidade presumivelmente deve passar por políticas de rompimento desse círculo vicioso, nos vários âmbitos que nele podem interferir, não só o do crime propriamente dito. Dois dos jovens que, armados, sequestraram o ônibus no Rio e, assustados, se renderam após curta parlamentação, expressam no próprio espanto a fragilidade de suas convicções criminosas. A reação da polícia foi reação desencontrada e desproporcional em relação àquele espanto. Níveis e tipos de delinquência pedem tratamento e reação adequados ao seu tamanho e às suas peculiaridades para que o círculo vicioso não perdure nem se robusteça. A política de mais polícia e repressão, até para corrigir os erros da polícia, apenas complica esse quadro, aparentemente alimentando a espiral de violência.
Os bandidos têm se aperfeiçoado, incorporaram tecnologias às suas práticas, modernizaram-se, adotaram técnicas de observação do comportamento humano, seja do comportamento individual, seja do comportamento coletivo. Aulas de criminalidade são ministradas diária e abertamente até na programação normal da televisão e nas informações da mídia. E não há como contornar a involuntária ambivalência da informação, que decorre da própria circunstância em que flui. Perigoso delinquente, há anos recolhido a prisão de segurança máxima, orgulha-se de ter lido mais livros do que a maioria dos professores universitários. É um invejável erudito. Aliás, já explicou à polícia que, preso, está mais seguro do que os policiais que o custodiam: ele não pode ser morto, sua vida deve ser garantida pela polícia. No entanto, pode mandar matar de surpresa. Nesse enorme e perigoso desequilíbrio está o cerne do problema, a carência de nova perspectiva sobre a criminalidade e de nova política de combate ao crime.
José de Souza Martins é professor emérito da USP e, autor, entre outros, de Uma arqueologia da memória social (Ateliê Editorial, 2011)
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