A cultura é a educação fora de ordem
Comentei nas últimas colunas a inserção social realmente realizada, convertida pelo PT em política de Estado, e que integrou dezenas de milhões de ex-miseráveis no mercado; e a inclusão social que é necessária e se dará pela educação. Alertei para os problemas que o consumismo traz, numa sociedade fortemente hedonista. Agora, pode a inclusão social necessária - que, repito, deve passar pela renda e consumo e ampliar-se graças à educação - ser reforçada, upgraded, pela cultura?
Há muitas definições de cultura. Proponho uma: ela é a educação fora de ordem. A educação normalmente se dá numa sequência ordenada. Aprende-se a ler, a fazer as operações matemáticas, depois vai-se conhecendo cada vez mais, até o curso superior, o doutorado... Mudar essa ordem pelo avesso - ou simplesmente fazer as coisas fora de ordem - não é impossível, mas é difícil. Contudo, em tudo o que já escrevi sobre educação, sempre defendi maior desordem na educação. Ela, em ordem unida, corre dois riscos: pode tornar-se muito chata, pode inibir a criatividade. Mesmo assim, uma certa ordem é necessária na educação. Já na cultura, não.
Comparemos uma aula sobre a escravidão e um filme sobre o mesmo tema. A aula precisa ter ordem: as navegações portuguesas, a colonização das Américas, o apresamento dos africanos, sua mortalidade maciça nas plantações, quilombos, a abolição, o racismo que persiste. O filme não precisa. Ele pode começar com um episódio, digamos, o apresamento do navio negreiro "Amistad", na costa dos Estados Unidos, em 1839 (estou falando do filme de mesmo nome, de Spielberg, mas poderia falar de seu "Resgate do soldado Ryan" ou de "Lincoln", os três tratam de acontecimentos históricos significativos). Daí, vamos aprendendo uma quantidade de coisas sobre a escravidão, que não incluirão seus começos, suas causas históricas, o número de mortos, mas mostrarão o racismo, a perseguição, a luta pela liberdade. Não aprendemos a mesma coisa, mas aprendemos. Vivenciamos. Um único filme não substitui uma aula de História. Mas se, ao longo de um tempo, virmos vários filmes sobre a escravatura - um deles, o "Lincoln" que mencionei - havemos de adquirir um conhecimento de boa qualidade. Dados mais objetivos, posso complementar até mesmo pela Internet. Que, por sinal, é incrível para conhecer fora de ordem, tanto assim que, quando apareceu no Brasil, o que hoje chamamos de "navegar" se dizia "surfar", como se fosse algo físico, divertido, radical.
Isso que descrevi é educação ou é cultura? Quanto mais fora de ordem e descompromissado, mais será cultura. Posso ir a todas as exposições de arte e com elas aprender muito sobre pintura. Ficarão brechas, essa é a diferença no confronto com a educação, que procura evitar vazios e completar a formação da pessoa. Mas no tempo de hoje, dá para "completar" uma formação? Em nossa sociedade, a mais complexa da história, necessariamente seremos incompletos. Dizer que, ao terminar um curso, completamos a formação é um erro. Um estabelecimento de ensino bom, seja do nível que for, infantil ou doutorado, não deve acenar com a promessa de completude. A educação tem muito uso a fazer da cultura.
Em outras palavras: para a educação, há matrícula e às vezes até vestibular, termo que vem de "vestíbulo", o local certo de entrada. Na cultura se entra por onde se quiser, quando se quiser, sem inscrição, sem nada. Essa liberdade de entrar - e sair - aumenta seu prazer, justamente porque não é da ordem da obrigação. E por isso mesmo eu poderia dizer que a cultura é a educação vitaminada pelo prazer. Educação e cultura expressam o que o ser humano é capaz de criar. São o que mais dá poder ao indivíduo, ao ser humano, à pessoa. A cultura emancipa. Por isso é tão importante não ficarmos na posição passiva do consumidor. Consumir se opõe a produzir. Ambos são necessários, é claro, mas a produção é mais ativa, o consumo mais passivo. Agora, se a perspectiva da produção é essencial, não é pelas coisas - ou mercadorias - que fabricamos. É porque, produzindo, criamos a nós mesmos. A principal obra do ser humano é o próprio ser humano. Educação e cultura são duas ferramentas essenciais para chegar lá.
A questão que se coloca é: estamos formando nossos jovens para serem inquietos culturais? Porque a cultura tem ainda um traço importante, ela modifica. Ela abre perspectivas. Uma pessoa sem acesso a ela só conhece o que está em seu imediato entorno. Uma criança que nasce num fim de mundo pode, descobrindo a música, a arte, a ciência, encontrar uma vocação que vá muito além de seu bairro. A cultura é mais preciosa quando é descoberta, revelação. Lembro um filme polonês que fez sucesso, "Madre Joana dos Anjos", sobre um padre que é chamado para exorcizar um convento em que as freiras estão possuídas pelo diabo. O próprio padre acaba cometendo um crime horrível - diz - "para que eu chame a mim os demônios e Madre Joana possa ser santa". O diretor, Jerzy Kawalerowicz, explicava: os dois se apaixonaram mas, como não tinham linguagem para chamar seu sentimento de "amor", achavam que era possessão demoníaca. A incultura pode levar à infelicidade.
Poderemos ampliar a liberdade das pessoas pelo acesso à cultura? Certamente. Mas não podemos esquecer essa sua natureza fora de ordem. Para lembrar uma série de sucesso, pode haver "1001" filmes, livros ou lugares a conhecer "antes de morrer", mas esse número - como nas "1001 Noites" - é apenas um sinal de que a aventura do conhecimento é inesgotável.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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