Gramsci e o Brasil
A composição dos palanques eleitorais nos estados trouxe um quadro bem diversificado de coligações, candidaturas a governador e vice-governador, parlamentares e alinhamentos na disputa presidencial. O fato de não poucos destes apoios serem contraditórios não obscurece a existência dos partidos e grupos eleitorais nos estados. E, por meio de muitas articulações, várias correntes partidárias se deslocaram para Aécio Neves, candidato que vem reunindo boa parte do mundo político realmente existente no país, movimento ora mal visto como reprodução da velha política e aliança com o atraso conservador.
Até as convenções de junho, a eleição presidencial estava delineada pelas candidaturas de Dilma, Aécio e Eduardo Campos, e se resolveria no horário gratuito. Devido ao fato de seu tempo de TV e rádio ser quase o dobro do que dispõem os principais adversários, ainda não estava excluída a possibilidade de a presidente Dilma ganhar no primeiro turno. Mesmo com a terceira via da coligação PSB-REDE-PPS na marca dos 8% dos votos e os partidos pequenos ultrapassando os 6%, a polarização do “nós” e “eles” continuava sendo a aposta afortunada do establishment PT-governo e do ex-presidente Lula. Esse seria o cenário, a não ser que de um céu azul fatos novos viessem complicar a ordem das coisas.
A incongruência dos palanques estaduais não surpreende, pois estes se compõem de uma grande variedade de interesses, inclusive de descontentes com o querer dominar tudo do PT. A ideologia com que o PT e Lula reclamam para si missão histórica é estranha às referências ao conjuntural com que opera o pluralizado mundo partidário brasileiro.
A ativação eleitoral nesse terreno efetivo contribui para quebrar a linha imaginária da polarização PT vs. PSDB e favorece a diferenciação política entre o campo oposicionista e o bloco da candidatura de Dilma Rousseff sob domínio do PT, mesmo que da aliança participe um partido de grande tamanho e trajetória de luta pelas liberdades democráticas, como o PMDB.
Os principais líderes da parte do mundo político que hoje apoia a candidatura de Aécio Neves valorizam a democracia representativa e o Estado democrático de direito. No outro campo, o ex-presidente Lula, o PT e a presidente da República não aceitam, ao contrário de todo partido de esquerda democrática, o Estado democrático de direito sem reservas.
A pregação de Lula sobre a divisão da sociedade ao meio há anos estimula um clima de águas turvas e agora acelera a radicalização da propaganda eleitoral, a que serve o decreto sobre os conselhos da presidente Dilma. Este decreto será usado como material de campanha, visando colocar as oposições no outro lado, entre os “eles” contrários à participação popular. Entrementes, cada vez mais se revela a visão intelectual anacrônica e simplificadora da nossa formação social, de elevada diversificação e vida política complexa — a visão com que Lula e o PT se apresentam como demiurgos das mudanças no país acima da vida partidária e política (o “nunca antes neste país”, do ex-presidente Lula).
O tema da democracia representativa como meio para as mudanças e aperfeiçoamento da sociedade, sob constante dúvida durante toda a Era Lula, permeia estas eleições, esperando vir à superfície da campanha eleitoral com mais nitidez. Teria de ser trazido pelas candidaturas oposicionistas e seus partidos coligados, principalmente se a candidatura de Aécio decidir desencadear discussão sobre esta questão incontornável.
Diante da possibilidade, ainda real, de mais um governo hegemonizado pelo PT e pelo ex-presidente Lula, que não têm compromisso com a democracia politica e mostram resistência à alternância na Presidência da República, a defesa da democracia representativa em si passa ao primeiro plano, como já ocorreu em nossa história politica, especialmente na circunstância do pós-64.
Aliás, o regime de 1964 não acreditava que a resistência na esfera política, na cultural, na social e em outros níveis da vida nacional pudesse derrotá-lo por meios pacíficos, dando passagem a uma transição que iria ter seu ponto alto na Constituição de 1988, que, como já se disse, concretiza a revolução democrática no Brasil.
Um grande número de analistas observa que o processo eleitoral transcorre paralelamente aos movimentos mais profundos da sociedade registrados pelos protestos de junho do ano passado. Os jovens questionaram os onze anos da Era Lula (qualidade dos serviços públicos, corrupção, cooptação), puseram em grande relevo a crise do Congresso e o distanciamento em que os partidos se encontram dos processos não institucionalizados de formação de opinião política.
Esse diagnóstico juvenil das questões centrais da circunstância — demandas sociais, melhoria da atividade parlamentar e dos partidos —, mais a questão econômica trouxeram tanto a questão da natureza conjuntural e sustentável das soluções, como a discussão sobre o exercício da política com a missão que lhe reconhece Jürgen Habermas (“A política [...] e não o capitalismo é responsável pela orientação do bem comum”; cf. Sobre a constituição da Europa, São Paulo, Unesp, 2012), como é próprio das sociedades complexas e democráticas.
É do mesmo filósofo alemão a tentativa convincente de reconstrução do projeto político democrático para o nosso tempo. Trata-se, assim explica Juan Carlos Velasco Arroyo ao comentar sua teoria da democracia deliberativa, de um projeto concebido “em e desde o horizonte ineliminável da única democracia realmente existente: a democracia liberal”, no qual Habermas ambiciona “harmonizar o elemento democrático e o liberal da modernidade política” (cf. “Orientar la acción. La significación política de la obra de Habermas”, introdução a J. Habermas La inclusión del otro. Estudios de teoria politica, Barcelona/B. Aires, Paidós, 1999).
Anota ainda Velasco Arroyo que do modelo habermasiano de política deliberativa (“possível tradução no âmbito da política da teoria da ação comunicativa”) “deriva um horizonte politico de caráter reformista que responde à necessidade de ampliar o marco formal da democracia representativa: se trataria tanto de aprofundar os elementos de participação cidadã já existentes por meio do fomento de uma cultura política ativa, como de assegurar conteúdos materiais de caráter distributivo estabelecidos pelo estado de bem-estar com o fim de neutralizar as indesejáveis consequências não igualitárias da economia de mercado” (ibid., p. 16-7).
Neste sentido, o processo eleitoral segue sem que o norte político programático do próximo governo proposto pelos principais candidatos da oposição tenha visibilidade. Mas não está excluída a possibilidade de a eleição presidencial se configurar aos olhos do eleitor como momento disponível para a transição da Era Lula a um difícil tempo novo. E que o candidato oposicionista que passe ao segundo turno venha a mostrar perfil comprometido com encaminhamentos democrático-institucionais dos problemas nacionais e habilidade para a conciliação no campo da política e o exercício de função pacificadora das tensões e conflitos crescentes em razão do esgarçamento da vida nacional em curso. O pressuposto seguro de um governo desse tipo se encontra na democracia representativa.
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Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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