- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
A Odebrecht já estava na mira, mas a prisão de seus principais dirigentes ainda era uma fantasia tresloucada do Ministério Público ao longo de toda a campanha presidencial de 2014. Num almoço informal em julho daquele ano, Marcelo Odebrecht, ao comentar possíveis mudanças no financiamento de campanha, rechaçou o fim das doações empresariais:
- "Cê tá louca? Se isso acontecer serei achacado a cada votação no Congresso. A vantagem de você fazer uma bancada é que isso lhe dá mais tranquilidade pra trabalhar".
Naquele ano, a tranquilidade do empresário custaria R$ 1,7 bilhão. Menos de um ano depois daquele almoço, Marcelo seria preso. Sua delação provocou um terremoto na Lava-Jato. Espalhou por todo o sistema partidário as suspeitas de ilicitude até então mais concentradas no PT. Principal motor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a tentativa de se livrar da delação da Odebrecht ainda move Brasília, a começar pelos partidos do Centrão, cujo apoio pende para o ex-governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin.
As doações empresariais não resistiriam à Lava-Jato. A eleição presidencial de outubro será a primeira, em quase três décadas, sem aportes oficiais de grandes empresas. Políticos, marqueteiros e estrategistas de campanha apostam em um caixa 2 mais vigoroso, mas é o resultado ainda incerto dessa arrecadação eleitoral que, paradoxalmente, pode explicar a lógica parlamentar que move o Centrão na disputa presidencial.
Ficou claro, a partir das delações da Odebrecht, que os políticos são os únicos a diferenciar caixa 2 de propina. É a partir desta linha divisória que os partidos têm a expectativa de traçar a linha que há de salvá-los. Para quem está na boca do caixa, pouca diferença faz, como demonstrou Fernando Miglaccio, diretor do setor de operações estruturadas da Odebrecht, em depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral: "Eu não sei nem o que dizer o que era caixa 2 e o que era propina. Eu não sei nem, desculpe, a definição de vossas senhorias do que é a distinção entre um e outro, porque, para mim, é uma coisa só".
As condenações da Lava-Jato, até aqui, também levaram em conta a dificuldade desta diferenciação, abrindo caminho para a criminalização do caixa 1. O terreno pedregoso do financiamento de campanhas levou à criação do fundo eleitoral, cujos principais beneficiários serão os mesmos que capitanearam a Lava-Jato.
Levou também a uma busca maior por nomes do meio empresarial que pudessem vir a financiar sua própria eleição e de seu grupo político. As novas regras ainda impulsionaram carreiras de celebridades e lideranças religiosas que moderam o risco da empreitada eleitoral, mas não o anulam. É um negócio de retorno menos garantido do que já o foi. Tanto para seus antigos financiadores, que continuam a ser assediados em esquemas de caixa 2, quanto para os destinatários dos recursos.
É aí que entra a estratégia do "Centrão". Como o atacado das doações minguou, o bloco concentrará suas forças no varejo congressual, na definição de Bruno Carazza, autor de "Dinheiro, Eleições e Poder" (Cia das Letras, 2018). O "Centrão" privilegia a unidade do bloco, em detrimento da disputa presidencial, porque concentra suas apostas no Congresso. É a partir de seus postos de poder que os partidos têm a prerrogativa de indicar presidentes de comissões e relatores de projetos prioritários.
É o Executivo que domina a pauta legislativa, mas são os partidos que, com esses postos em mãos, podem se reapresentar como despachantes de interesses privados, relação que a legislação custa a coibir. Com um fluxo de recursos garantidos para os próximos quatro anos, a aposta na empreitada parlamentar tem tudo para se revelar um bom investimento para os parlamentares e um péssimo negócio para as empresas.
Em outro achado citado por Carazza, pesquisa de Sérgio Lazzarini mostrou que, entre 2002 e 2010, o volume de empréstimos do BNDES foi proporcional às doações para deputados federais eleitos. Sem as doações oficiais, os empresários perdem um instrumento importante para alavancar benesses em valor muito superior ao investido. Resta a tramitação de propostas de interesse empresarial. Uma negociação corpo a corpo, projeto a projeto. Tudo o que Marcelo Odebrecht queria evitar.
A pesquisa do autor, especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ministério do Planejamento, destrinchou uma a uma as relatorias das medidas provisórias. As MPs oferecem o melhor campo de trabalho para os traficantes de interesses no Congresso. Além de verificar se a proposição atende aos requisitos de urgência e relevância, o que raramente o fazem, seus relatores têm a prerrogativa de alterar a redação original acolhendo emendas e "jabutis" (adendos com teor alheio ao texto da medida), não raro em consonância com o Executivo.
Ao longo do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma média de 36% dos relatores receberam doações de setores vinculados às MPs nas quais tinham plenos poderes. A partir de 2007 até o fim do primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, o negócio bombou: 68% dos relatores haviam sido financiados pelos setores das MPs sob sua responsabilidade. No segundo mandato, o patamar se manteve acima de 60%.
Além dos relatores, os líderes dos maiores partidos também cumpriram, a partir de 2007, a mesma trajetória. Os escolhidos para a função pelas cúpulas partidárias também tinham sido mais aquinhoados por doações do que os demais parlamentares. E assim permaneceram até o presente.
Na Câmara, as relatorias de projetos são distribuídas por quase todo o espectro partidário. A emergência do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da mesa manteve parte do time escolhido pelo antecessor, o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), preso em Curitiba, mas fez emergir nomes à elite de relatores, como Alexandre Baldy (PP-GO), que só reforçaram o "Centrão".
Deputado de primeiro mandato, aos 38 anos, relator do projeto de lei da repatriação de recursos e hoje ministro das Cidades, Baldy foi financiado por João Alves Queiroz Filho, o Júnior ex-Arisco, que se tornou o maior acionista do conglomerado Hypermarcas. Um dos maiores aliados de Rodrigo Maia, Baldy foi um despachante preferencial da empresa, segundo Lucio Funaro, titular do time dos delatores da Lava Jato.
Se a situação na Câmara parece equacionada com a perspectiva de reeleição de Maia à Presidência da Casa, o mesmo não se pode dizer em relação ao Senado. Em outro depoimento coletado por Carazza nos anais da Lava-Jato, Cláudio Mello Filho, lobista-chefe da Odebrecht, cargo herdado do pai, identifica o senador Romero Jucá (MDB-RR) como o protótipo do parlamentar cujo papel na negociação das propostas legislativas fez dele interlocutor privilegiado do setor privado.
O lobista, que o identifica como o "resolvedor-geral da República no Congresso", enumera as razões pelas quais o investimento em Jucá tinha retorno garantido. O senador demonstra trabalhar com afinco nas pautas de interesse da empresa, tem grande capacidade de articulação entre outros donatários do MDB, notadamente Renan Calheiros (AL) e Eunício Oliveira (CE), e goza de livre trânsito nos ministérios do Planejamento e da Fazenda.
O atual líder do governo no Senado é candidato à reeleição e disputa como favorito em Roraima, seu Estado de adoção. Os dados de Carazza justificam o investimento do "Centrão" na tentativa de flexibilizar o oligopólio da Casa. Dos 81 senadores, apenas 23 foram relatores de medidas provisórias na Casa entre 2001 e 2017. Mais da metade dos relatores foram escolhidos nas hostes no MDB, principal partido no Senado. Deles, o campeão absoluto é Jucá. De 238 medidas provisórias aprovadas ao longo desses 16 anos, o senador relatou 73. Dá uma média de quatro relatorias por ano. O que significa que Jucá sempre teve alguma MP nas mãos para relatar e para estreitar seus laços com o setor privado.
Ao longo desse período, Jucá, o 'Caju' da lista da Odebrecht, um dos mais empenhados parlamentares na empreitada por estancar a sangria com o impeachment, liderou o time de relatores, uma lista em que o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), hoje preso em Curitiba, ocupou um modesto 43º lugar, com apenas seis relatorias. A discrepância se explica, entre outros motivos, pela prática da Câmara de maior distribuição de relatorias em contraposição à concentração observada no Senado.
E não apenas com a Odebrecht. Em outro achado da pesquisa resultante da tese de doutorado de Carazza, os setores que mais contribuíram com financiamento de campanha foram, em ordem decrescente, construção, alimentício e bebidas, financeiro, siderurgia e metalurgia, mineração e farmacêutica. O peso dos financiadores não guarda relação com sua participação no PIB. O setor de construção, por exemplo, contribui com menos de 8% da riqueza nacional e foi responsável por 28% das doações de campanha. Os fabricantes de alimentos e bebidas ocupam uma fatia de 7% do PIB e 21% dos doadores. Já os bancos, detentores de 6% da riqueza, responderam por 12% de todo o financiamento eleitoral.
A discrepância é atribuída, em grande parte, ao impacto da regulação, do crédito e da tributação sobre esses setores. A intermediação dos congressistas nessas atividades justifica o financiamento e explica a frequência com que empresas líderes desses segmentos apareceram, nos últimos anos, em operações como Lava-Jato e Zelotes, que investigou a venda de decisões no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Quem quer que se eleja ao Palácio do Planalto, terá que desmontar as bombas fiscais armadas pelos despachantes dos interesses desses setores no Congresso, da desoneração da folha de pagamentos ao Refis. Aí está o mapa da mina do 'Centrão'.
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