sexta-feira, 27 de julho de 2018

José de Souza Martins: A corrupção lúdica

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Em 1994, participei, na Universidade de Londres, de um seminário sobre corrupção política com uma exposição sobre "clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo". Foi interessante descobrir que a preocupação com o assunto era uma preocupação disseminada entre os cientistas sociais da nova geração. Os organizadores, W. Little e E. Posada-Carbó, reuniriam as palestras do evento no livro "Political Corruption in Europe and Latin America", publicado pela Macmillan Press, em 1996. Um panorama da esquisita função da corrupção nos rumos que estavam tomando a economia e a política da pós-modernidade.

Os trabalhos e os debates prenunciaram que o que era deslize ocasional de políticos se tornava instrumento regular de uma aliança incestuosa entre riqueza e poder. O novo capitalismo do pós-guerra e da era pós-colonial abria mão da ética que fora constitutiva da economia na sociedade pós-feudal. A corrupção se tornaria o que posso chamar de "corruptismo", um sistema de ganhos moralmente ilícitos e de poder ilícito neles baseado. Um sistema de democracia bloqueada e limitada, apoiado em cidadania relativa, não mais a cidadania dos princípios e valores da Revolução Francesa. Um mundo mais rentável e menos decente está nascendo.

A disseminação política da corrupção não veio do nada. Diferentes sociedades, a partir de práticas já condenadas pelos respectivos valores tradicionais tinham brechas culturais e práticas geralmente dissimuladas que permitiam a multiplicação privada da riqueza à custa do que era público e do Estado. Em todas as partes, e aqui no Brasil também, o que contribuiu para a aceitação da corrupção como algo tolerável foi a progressiva reeducação da população para aceitar a precedência do lucro sobre a vida, que disseminou a irrelevância dos valores morais em relação aos valores materiais.

Não é surpresa que, no Brasil, muitos dos apanhados com a boca na botija da corrupção não sejam pobres que, eventualmente, tenham descoberto caminhos alternativos e ilícitos para enriquecer. Os de maior visibilidade no cenário das condenações e dos aprisionamentos são ricos e poderosos ou gente de classe média que se tornou poderosa e, por isso, rica.

Nos detalhes de cada caso, vê-se que a corrupção é aqui uma prática lúdica, uma diversão, um jogo de quem tem tudo e ainda quer ter mais. Neste momento, os corruptos locais querem também ser reconhecidos como honestos e santos, pretendem passar por presos políticos, por inocentes de crimes que entendem não ser crimes porque são deles. Tentam criminalizar a prática da Justiça, os juízes e os tribunais, a ação dos funcionários da lei e da Constituição. Querem com isso descriminalizar o crime e incriminar os honestos.

As ciências sociais precisam incorporar, com urgência, esse mundo invertido e pervertido, o da sociedade do absurdo e do avesso, como objeto de conhecimento e de deciframento. A começar do reconhecimento de que os fundamentos estruturais e históricos da perversão estão aí há muito tempo, desde quando os bem-nascidos podiam se apropriar legalmente do que era público. O Estado e os poderosos eram reciprocamente cúmplices. O que hoje consideramos corrupção não o era então. Agora é. O sistema partidário de pseudocoalizões e negocista é seu instrumento.

Desde antes de ser oficialmente corrupto, o Brasil já mantinha uma relação promíscua e comprometedora entre os particulares e o governo. Era um tira lá, dá cá, que não envergonhava ninguém nem causava espanto. É que dantes como agora, o que chamamos de corrupção era e continua sendo um modo de fazer política inscrito nos próprios alicerces do Estado. Nessas bases, fazer política já é um convite à corrupção, dadas as facilidades e facilitações da troca de favores num país em que o voto é um leilão de consciências. Pode ser comprado e pode ser abduzido pelo populismo rastaquera. Os que não têm como se defender contra o assédio eleitoral inescrupuloso, a propaganda para acobertar e não para revelar, não percebem que, não raro, o voto do brasileiro é um voto saqueado.

A palavra sebaça chegou-me ao vocabulário de jovem adulto, há muitos anos, quando li, pela primeira vez, "O Tronco", o belo livro do escritor goiano Bernardo Élis. Nele, narra o autor a saga de uma família envolvida nos dilemas das irregularidades, ilegalidades e arcaísmos da dominação oligárquica e das práticas extralegais da República Velha na Vila do Duro, hoje Dianópolis. Foi caso acontecido. Uma das práticas era a de impor aos vencidos a sebaça, o saque de seus bens, algo dado como normal e lícito em muitos lugares deste país até hoje. Os agentes e beneficiários da sebaça de hoje nos tratam como um país de vencidos.
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José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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