- O Globo
Até semana passada, brincávamos nas ruas o carnaval. Mesmo que fossem apenas reações de mentes protegidas pela data, contra aquilo que vivemos todos os dias. Não se tratava de esquecer o mundo como ele é; mas de lembrar como ele podia ser. A vida se tornou, por pouco tempo, uma sólida memória de nós mesmos.
Tínhamos só que pensar no quefazer coma lembrança dos afogados nas barragens rompidas, dos meninos queimados no contêiner tornado alojamento, do helicóptero em cham as como jornalista exemplar, dos que rolaram morro abaixo com suas casas na lama da chuva, dos tuítes intempestivos do presidente, de tanta coisa.
Se você faz circular uma cena como a dos homens pornográficos no carnaval de São Paulo, queira ou não está sendo conivente com ela. Tanto que a dupla aproveitou a divulgação e sua repercussão, fazendo passar um cínico manifesto em defesa do que fizeram, como se aquilo fosse uma “mensagem de artistas”.
Agora vamos supor. Suponha, por exemplo, que o ato sobre palco improvisado acima de todas as cabeças, sem nada a ver com o bloco que desfilava, tenha sido mesmo encenado por artistas pornô, como se declaram no tal manifesto. Suponha que tenham sido contratados por um terceiro que registrou a cena, mas não aparece no vídeo. E que esse personagem estava no lugar da selfie que os protagonistas deveriam fazer, se fosse projeto deles divulgar seu horror particular. Por que então não divulgaram, eles mesmos, nas redes sociais, o que o presidente acabou fazendo?
E mais uma coisa que não me ficou clara, porque não foi dita por ninguém: onde o presidente encontrou o vídeo? Viajando pela internet? Ou foi enviado diretamente a ele? Suponha que sim: então por quê?
Cuide de nós todos, presidente, os que votaram e os que não votaram no senhor, é disso de que precisamos. Vamos nos empenhar na solução para a Previdência e em mais coisas importantes para nossas vidas. Deixe o exibicionismo dos atores pornô pra lá, já sabíamos que isso não presta. Concordando ou não com o dito nos blocos e nas escolas, o carnaval deste ano foi um dos mais politizados dos últimos tempos, e temos que comemorá-lo. Pois é uma prova de que o povo está pensando no Brasil, além da diversão. Isso não é bom pra todo mundo?
Embora velho portelense, adorei o desfile da Mangueira, fiquei siderado. Mas quem não estiver de acordo, tem todo o direito de dizê-lo. A democracia não é uma concessão de força nenhum a, ela é a força da população que a escolheu. Na democracia, cada um diz o que pensa e depois vemos em quem o povo acredita, na hora da eleição. Quem perder tem que se conformar, embora não seja obrigado a mudar de opinião.
Há tempos não tínhamos um carnaval tão politizado. Embora nosso prefeito não goste de samba, ninguém estava ligando pra isso. Se o negócio é ser prefeito senão não sobrevive, depois ele se candidata em outra cidade que não tenha carnaval. Mas a abertura oficial do carnaval de Salvador, Bahia, foi celebrada pelo prefeito A CM Neto, do D EM, e pelo governador Rui Costa, do PT, de braços dados no Campo Grande. Depois eles saem na porrada. Por enquanto, que imagem mais bela e desejada para um carnaval democrático!
Volto sempre a uma manhãzinha de fevereiro de 1989, quando a história do carnaval carioca mudou de rumo. Ela se tornou um encontro entre a tradição da cultura popular do Rio e a consciência cívica da cidade. Com enredo agressivo e deslumbrante, sob o titulo de “Ratos e urubus... larguem minha fantasia”, Joãosinho Trinta levava a Beija-Flor a romper com desfiles sintonizados apenas com os interesses do poder, como sempre foram.
Umas três décadas antes, no início dos anos 1960, o Salgueiro, comandado por Fernando Pamplona, revolucionara os desfiles com o enredo “Xica da Silva”. Pamplona trouxe com ele profissionais da Escola Nacional de Belas Artes e artistas do Teatro Municipal. Entre esses, Joãosinho Trinta, jovem cenógrafo maranhense. Foi nesse outro amanhecer de sonho, ainda na Presidente Vargas, que nasceu meu interesse pelo assunto. Foi ali que comecei a buscar meu filme “Xica da Silva”, realizado uns anos depois.
Finalmente, na virada pro século XXI, recorri a Joãosinho Trinta para criar o desfile da escola de “Orfeu”, filme que realizei inspirado na peça de Vinicius de Moraes, de 1956. Ele encenou a história do Orfeu carioca na Viradouro, a vice-campeã desse ano. Assim filmamos a glória culturalmente revolucionária do personagem. O filme representou o encontro de limites cultura popular brasileira, de Joãosinho a Toni Garrido, de Nelson Sargento a Mr. Catra, de T om Jobim a Caetano Veloso.
Agora deu no Ancelmo. Segundo o economista José Roberto Afonso, a Receita Federal arrecadou, em 2018, R $433 milhões como cultivo, beneficiamento e moagem do café. Já com a cultura (música, cinema, teatro, circo etc .), a arrecadação da Receita chegou a R $905 milhões, o dobro da do café. Imagine se somarmos a isso aculturado carnaval, presidente.
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