Marcelo Godoy | O Estado de S. Paulo / Aliás (26/1/2020)
Reeditado em uma época propícia, o livro ‘Exército e Nação’, de Gilberto Freyre, discute o papel das Forças Armadas para a República
Um livro tem seu destino vinculado aos seus leitores. É conhecida a máxima de Terenciano. Se o destino das obras não se separa dos que o folheiam também não se afasta de seu tempo e dos significados que assumem geração após geração. Quando lançado em 1949, Nação e Exército, de Gilberto Freyre, refletia, nas palavras do cientista social Oliveiros Ferreira, “a necessidade de os civis construírem uma ideologia, um mito que justificasse seu constante ir e vir aos quartéis para que os militares os ajudassem a resolver suas pendências”.
O mito é o do Poder Moderador do Exército na República, propalado por Gois Monteiro, que traduziu a realidade nacional de 1889 a 1979, quando os atos institucionais deixaram de ter validade. Um poder moderador que, a exemplo do imperial, devia pressupor a inviolabilidade de quem o exerce, não estando sujeito a responsabilidade alguma. Um mito que, hoje, alguns teimam em reeditar por meio do artigo 142 da Constituição.
O Exército fez – como observa Oliveiros em Elos Partidos – intervenções sem conta na vida política da República, embora devesse, na prática, ter sido um instrumento de Estado a serviço dos governos.
Não o foi. Em vez disso, fez com que o pêndulo oscilasse em 1945, em 1954 e em 1964 em uma direção e em 1955 e 1961 em outra. Freyre escrevera em 1948 sua conferência na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), que originou o livro. Fazia três anos que os militares haviam derrubado, em 29 de outubro de 1945, o ditador Getúlio Vargas, encerando o Estado Novo.
O sociólogo, então deputado federal eleito pela UDN (União Democrática Nacional), fora vítima do arbítrio do governo Vargas – preso e espancado pela polícia. Para o Mestre de Apipucos, “diante de uma situação tal qual a que se vem definindo no Brasil – a de um Exército organizado ao lado de atividades civis que continuam, quase todas, desorganizadas – a solução é (...) a de procurarmos imitar o exemplo do Exército, organizando tão bem quanto ele as demais forças nacionais”. E conclui: “Forças de que ele possa continuar a ser o coordenador em épocas de desajustamento mais agudo entre regiões ou entre subgrupos nacionais”.
Freyre, assim como outros políticos – o PSD se valera do marechal Henrique Lott, para derrubar dois presidentes em 1955 – pensavam que o Exército, como poder moderador, intervinha nas crises nacionais para resolvê-las de acordo com o disposto na Constituição. Não perceberam que amplos setores das Forças Armadas haviam chegado à conclusão de que os políticos não eram capazes de realizar os ideais de modernização do País pelos quais os militares haviam lutado em 1930.
O destino de sua obra e sua influência entre os militares pôde ser aferida em 1965, quando foi publicado Exército e Nação, do general Aurélio de Lyra Tavares. Futuro ministro do Exército e integrante da Junta que editaria o AI-17, para punir funcionários civis e militares, a exemplo do que fizera o Estado Novo que Freyre combatera, o general via o Exército como um elemento democrático na sociedade brasileira, constituído, a exemplo da Nação, pela miscigenação de brancos, índios e negros.
A mesma imagem do caráter democrático do Exército era repetida por Nelson Werneck Sodré, cuja obra fora citada pelo então comandante da Eceme, em 1948, o general Alencar Araripe, ao apresentar o texto do sociólogo. Ou seja, a visão de Freyre sobre o Exército era compartilhada por militares ligados a forças políticas díspares, como o PCB – ao qual o futuro general Sodré era ligado – e a UDN. Todos tinham então de si a mesma visão de Freyre, para quem o Exército era a única força organizada da Nação. Esse é o caso de Lyra Tavares.
Foi a ruptura representada pelo regime militar – quando, a exemplo do período inicial da República, os militares assumiram o governo – que levou à perda de consenso em torno da visão de Freyre – o sociólogo apoiou o golpe de 1964 e chegou a ocupar um cargo no governo do general Emílio Medici. A consequência dos anos de arbítrio da ditadura foi o repúdio do mundo político às intervenções militares. Apesar de o lobby militar ter conseguido a manutenção na Carta de 1988 do uso das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, os constituintes condicionaram-na ao chamamento de um dos poderes da República. Com a redemocratização, a pequena obra de Freyre sobre os militares permaneceu quase esquecida, destino que lhe foi conferido pela nova situação do País. O Exército após 1985, porém, nunca descuidou do sociólogo.
Pode-se encontrar na decisão do general Zenildo Zoroastro de criar o dia do Exército, na data da 1ª Batalha de Guararapes (19 de abril de 1648), uma prova desse interesse por Freyre. Era 1994. O processo foi descrito pelo antropólogo Celso Castro no também intitulado Exército e Nação. Castro mostra como a data associa a criação do Exército à formação da nacionalidade, o que lhe garante uma força simbólica enorme. A razão é a presença das “três raças” constitutivas do povo brasileiro na luta contra um inimigo estrangeiro – o invasor holandês. Freyre, certamente, teria aplaudido a escolha do general Zenildo. O sociólogo, a exemplo de outros intelectuais do século 20, assumira a missão de nos dar uma interpretação à Nação, conferindo uma identidade à “civilização dos trópicos”.
Em 2016, com a crise das forças políticas que dominaram a cena eleitoral do País desde a redemocratização, o Exército começou a planejar a reedição do livro do sociólogo. A obra, agora reimpressa pela Biblioteca do Exército, sai em um momento em que, a exemplo de sua primeira edição, um militar ocupa a Presidência e muitos políticos voltaram a ver nas Forças Armadas um remédio para um Estado desorganizado, capazes de resolver a insegurança pública no Rio, os incêndios na Amazônia e o vazamento de óleo no Nordeste.
Ressurge, então o texto de Freyre: “O País onde o Exército seja a única, ou quase a única, força organizada necessita de urgente organização ou reorganização do conjunto de suas atividades sociais e de cultura para ser verdadeiramente uma Nação. Nação desorganizada não é Nação; é apenas paisagem. Paisagem ou cenário de nação. E mesmo que o exército seja moral e tecnicamente primoroso, esta nação corre o perigo de se transformar em cenário de paradas ou simples campo de manobras”. O Exército afirmou que reeditou a obra em razão da importância do texto para a compreensão de seu papel na evolução da nacionalidade. “Civis e militares dispostos ao diálogo e ao entendimento são a garantia de que enfrentaremos os desafios do futuro como nação livre e democrática”, escreveu o general Richard Nunes. Novos tempos. Busca-se o diálogo em vez da tutela. A geração atual realça outro aspecto da obra de Freyre. São seus leitores atuais que decidirão novamente o destino do livro do sociólogo.
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