- Folha de S. Paulo
Para fidelizar novos conservadores, Boris Johnson não tem alternativa senão abrir cofre público
Num gritante contraste com a tensão insustentável dos últimos meses, o brexit será efetivado no final desta semana num ambiente de relativa indiferença.
Depois de uma vitória triunfal na eleição parlamentar de dezembro, Boris Johnson tem o horizonte limpo pela frente, e todos parecem ter esquecido a briga épica dos últimos três anos.
Nesse contexto pacificado, o regresso com força do gasto público surge como um inesperado desdobramento. Apelidado de “Boris, o construtor” pela imprensa, o premiê já anunciou um fundo de 80 bilhões de libras (R$ 437 bilhões) para desenvolver a infraestrutura, novos subsídios a empresas e um aumento de 6,2% no salário mínimo.
À primeira vista, Boris Johnson parece estar correndo para consolidar a sua hegemonia. O último pleito, marcado pela conquista inesperada dos principais bastiões tradicionais da oposição, mudou o mapa eleitoral dos conservadores.
Os novos deputados representam os ingleses das regiões periféricas das cidades médias do Norte e das Midlands. Tradicionalmente trabalhistas, os eleitores dessas regiões, traumatizados por uma década de austeridade, cederam à promessa de que o brexit marcaria o começo de um novo tempo de prosperidade.
Para fidelizar esses novos militantes conservadores que lhe garantem o controle do partido e do governo, Boris Johnson não tem alternativa senão ir além do discurso e abrir o cofre público.
Essa urgência política também pode ser apresentada como uma necessidade estratégica. Até os mais fanáticos defensores da austeridade concordam que só um Estado forte pode projetar o Reino Unido na nova realidade.
O investimento em ciência, tecnologia e infraestrutura parece indispensável para permitir à indústria superar o término da cooperação integrada com os países da União Europeia —destino de metade das exportações.
O próprio Kenneth Rogoff, autor do conceito de que o excesso de dívida promove a recessão, concordou que, diante dos fatos, a última preocupação dos britânicos deve ser o deficit público.
Mas a realidade é que o estado de exceção criado pelo brexit serve de força legitimadora para uma mudança de paradigma que vinha sendo defendida e planejada há muito tempo.
Os trabalhos de David Goodhart e Dan Jackson deixaram claro que as regiões mais afetadas pelo retrocesso dos serviços públicos e o avanço da globalização haviam se tornado redutos naturais dos conservadores.
Importante lembrar que o regresso do gasto público é uma das principais bandeiras da ultradireita global. Na Itália, Matteo Salvini chegou ao topo prometendo desafiar as imposições fiscais da UE. Na Índia, o governo Narendra Modi simplesmente redefiniu o conceito do orçamento populista.
Mas a adesão da pátria histórica do capitalismo moderno tem uma dimensão simbólica infinitamente maior.
Ela marca o começo de uma nova era para os influentes conservadores britânicos, fervorosos defensores do desmonte do Estado desde os anos 1970 e do advento do governo Margaret Thatcher.
Nessa nova era, o governo de ultradireita brasileiro, com sua política de arrocho orçamentário, será visto como uma curiosa relíquia dos velhos tempos.
*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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