A
cura dos desatinos do capitalismo individualista deve ser buscada, em parte,
pelo controle da moeda e do crédito
“Devemos abandonar os falsos princípios morais
que nos conduziram nos últimos dois séculos. Eles colocaram as características
humanas mais desagradáveis na posição das mais elevadas virtudes. Não há nenhum
país, nenhum povo que possa vislumbrar a era do tempo livre e da abundância sem
um calafrio [...]. Pois fomos educados para o esforço aquisitivo e não para
fruir [...]. Se avaliarmos o comportamento e as realizações das classes
abastadas de hoje, as perspectivas são deprimentes [...]. Os que dispõem de
rendimentos diferenciados, mas não têm deveres ou laços, falharam, em sua
maioria, de forma desastrosa no encaminhamento dos problemas que lhes foram
apresentados.” (John Maynard Keynes, Perspectivas Econômicas dos Nossos Netos -
1930).
Os
jesuítas da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), me adiantaram
gentilmente a Encíclica Fratelli tutti na sexta-feira, 2 de outubro. Peço
licença para oferecer aos leitores do Valor uma citação do documento do Pontífice,
divulgado no domingo, 4 de outubro.
“Se alguém acredita que se trata apenas de
fazer funcionar melhor o que já fazíamos, que a única mensagem é que devemos
melhorar os sistemas e as regras já existentes, está negando a realidade...
Observa-se a penetração cultural de uma espécie de “desconstrucionismo”, onde a
liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. Fica em pé
unicamente a necessidade de consumir sem limites e a exacerbação de muitas
formas de individualismo sem conteúdo”.
Keynes,
assim como Francisco, professava a crença que a sociedade e o indivíduo eram
produtos da tradição e da história. Ele cultivava os valores de uma moral
comunitária, visceralmente antiutilitarista e antiindividualista. Essa
convicção era acompanhada da admiração pelas virtudes criativas da modernidade
capitalista nascida sob o consigna do avanço das liberdades e da autonomia do
indivíduo.
No
seu célebre artigo “O fim do laissez-faire”, Keynes vergastou a ideia de que a
busca do interesse privado levaria necessariamente ao bem-estar coletivo. “Não
é uma dedução correta dos princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo
esclarecido leva sempre ao interesse público. Nem é verdade que o autointeresse
seja, em geral, esclarecido”.
Ouço
Francisco: “A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo
melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se
tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais
difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea
solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças
individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.
Keynes
entendia que os efeitos negativos do darwinismo social devem ser neutralizados
pela ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, pela atuação de “corpos
coletivos intermediários”, tais como um Banco Central dedicado à gestão
consciente da moeda e do crédito e empresas semipúblicas mais voltadas para o
interesse coletivo que para a consecução do lucro.
A
cura dos desatinos do capitalismo individualista deve “ser buscada, em parte,
pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte,
por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante
produção de dados e informações”. Maynard insistia na “direção inteligente pela
sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”,
particularmente as decisões sobre a posse da riqueza marcadas pelo conflito
entre o investimento criador de riqueza nova - leiam-se emprego, rendimentos e
lucros para trabalhadores e empresários - e a acumulação de valores fictícios,
estéreis para a comunidade.
No
último capítulo de sua obra maior, Notas Finais sobre a Filosofia Social a que
pode levar a Teoria Geral, Keynes propõe um conjunto de políticas apoiadas nas
concepções já sugeridas em 1933, no “The Means to Prosperity”: “o problema
econômico é uma questão de economia política, isto é, da combinação entre
teoria econômica e a arte da gestão estatal”.
O
primeiro ponto desse arranjo de política econômica é a “socialização do
investimento”, entendida como a coordenação pelo Estado das relações entre o
investimento público e privado. O “orçamento de capital” do governo deve ser
administrado de modo a minorar as incertezas que contaminam o investimento
privado.
O
segundo pilar da proposta keynesiana cuida da eutanásia do rentista. A política
bancária e de crédito deve ser administrada com o propósito de neutralizar “o
poder de opressão cumulativo do capitalista para explorar o valor de escassez
do capital [...] enquanto sejam intrínsecas as razões para a escassez da terra,
isso não é verdade para a escassez de capital”.
O
terceiro ponto reclama um sistema fiscal que mantenha permanentemente a
capacidade de redistribuir renda dos mais abonados para as classes menos
favorecidas, com o objetivo de manter o consumo crescendo à mesma velocidade da
expansão da renda.
O
quarto ponto: Keynes clamava, já na Teoria Geral, por uma distribuição mais
equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre
deficitários e superavitários, como forma de evitar os desatinos competitivos
de “empobrecer o vizinho”.
Isso
significava facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países
superavitários. O propósito era evitar os “ajustamentos deflacionários” e
manter as economias na trajetória do pleno emprego.
Para
Keynes, suas propostas poderiam se interpretadas “por um publicista do século
XIX ou um financista norte-americano contemporâneo [como] uma abominável
limitação ao individualismo; a mim parece o contrário: o único meio praticável
de evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e com a
condição de um proveitoso exercício da iniciativa individual”.
Na
Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “... que promova a
diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível
aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro
fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem
formas internas de solidariedade e confiança mútua, o mercado não pode cumprir
plenamente sua própria função econômica. Hoje, precisamente essa confiança
falhou”.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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