Seremos
para sempre reféns do que 2020 foi
Rascunhava
a análise sobre recuperação da economia sob aproximação do fim do auxílio
emergencial, desemprego galopante e recrudescimento da pandemia, quando
tropecei num comentário na rede social sobre um par de biografias do tempo.
Joaquim Ferreira dos Santos tratou da bela época em “Feliz 1958: o ano que não
devia terminar”. Lembro que presenteei minha mãe com esse inventário de bons
momentos — e a alegrei. Mestre Zuenir Ventura produziu “1968: o ano que não
terminou”, sombreado pelo AI-5, o ato mais brutal da ditadura militar, até hoje
pranteada por inimigos da democracia. Pois 2020, ouso prever, será o ano que
não terminará. Seremos para sempre reféns do que 2020 foi, do que poderia ter
sido, do que influenciará. Ninguém imune.
A “Moderna gramática portuguesa”, do professor Evanildo Bechara, define futuro como o tempo verbal referente a fatos ainda não realizados. Reparte-se em dois. O futuro do presente aponta o Norte: diz respeito ao que se deseja realizar, construir, experimentar. O futuro do pretérito trata do não efetivado. Este ano guarda ambas as dimensões. Foi a temporada de planos adiados, projetos reagendados; e também do cotidiano improvisado, de despedidas inesperadas, vidas interrompidas, existências abreviadas — até aqui, quase 180 mil brasileiros mortos e famílias enlutadas.
Faz
nove meses que o Brasil entrou na espiral da mais grave crise sanitária em um
século. A pandemia da Covid-19 nocauteou a economia e aumentou a
vulnerabilidade social. Escancarou desigualdades, até então invisibilizadas,
porque o racismo sempre esteve à espreita, assim como a pobreza e a miséria, as
más condições habitacionais, a escassez de água e esgoto, a debilidade dos
transportes públicos, o fosso entre atribuições e remuneração de homens e
mulheres, a LGBTfobia, a brutalidade policial, a violência doméstica, as
assimetrias na educação, a desatenção a indígenas, quilombolas e pessoas com
deficiência, o descaso com o Sistema Único de Saúde, a precarização das
relações de trabalho.
Nunca
o país tão esquadrinhado em prazo tão curto. O Brasil vinha iludido por três
anos de promessa de recuperação do Produto Interno Bruto, do emprego e da
renda. Lembrava a piada da pessoa que, coberta de maquiagem, diante do espelho,
encontra desapontamento, em vez de beleza. À recessão de 2014-2016 sucederam-se
três anos de crescimento medíocre (cerca de 1% ao ano), sempre acompanhados da
promessa de um pós-réveillon melhor. Tanto não vinha bem que, em março, uma
quinzena de isolamento social derrubou em 1,5% a atividade do primeiro
trimestre. Havia quase nenhuma gordura para queimar, e ela derreteu no
desembarque do novo coronavírus. No trimestre abril-junho, tombo de 9,6%, o
maior da série histórica.
Ontem,
o IBGE divulgou os resultados de julho-setembro. O salto, igualmente recorde,
de 7,7% tirou a economia da recessão técnica (dois trimestres seguidos de
queda), mas não foi suficiente para recuperar as perdas da primeira metade do
ano. O PIB está 4,1% abaixo do fim de 2019. Na comparação com 2014, pico da
série, há perda de 7,1%. O ministro Paulo Guedes repetiu o mantra da economia
que reage em “V” — ou seja, uma forte queda sucedida por grande expansão.
Difícil crer, diante do rol de indefinições de sua pasta: Orçamento não
aprovado, contas públicas cambaleantes, desemprego galopante, desconfiança dos
consumidores, pressão de alimentos, gasolina e energia elétrica na inflação.
O
país terminou outubro com 13,8 milhões de desempregados e outros 14,8 milhões
de brasileiros que gostariam de trabalhar, mas não estão buscando vaga por
causa da pandemia. No setor de serviços, o que mais emprega, a recuperação está
aquém da indústria e do comércio. O agravamento da pandemia ameaça a retomada
no verão, a estação mais rentável para bares e restaurantes, espaços de cultura
e entretenimento, hotéis e pousadas. O governo negacionista, indeciso e
incompetente não consegue elaborar a política social para a vulnerabilidade das
famílias e, simultaneamente, amparar a atividade econômica, via consumo. O
Ministério da Saúde não consegue estruturar um plano de imunização, essencial
para salvar a vida dos brasileiros e preservar a economia. O ano letivo foi
perdido, e não há projeto para a Educação; à espreita dos estudantes, estão
abandono e atraso.
Por essas e outras, 2020 não chegará ao fim quando janeiro chegar. O país afundou em crises e confrontou velhas mazelas. Nas eleições recém-concluídas, as cidades se afastaram do extremismo e acenaram ao pragmatismo. Em vez de discurso vazio, gestão eficiente. A sociedade civil voltou a campo: propõe, realiza e cobra ações sociais. A disputa está aberta, a bola em jogo. O futuro, próspero ou deplorável, está em gestação. O Brasil por vir está guardado em 2020, o ano eterno.
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