Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para
a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a
emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a
pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país
do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888,
a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de
brancos.
Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.
A escravidão se
faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o
corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano
tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da
mente à educação.
A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas
negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda
aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando
trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a
liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos
escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta
produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se
perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de
qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132
anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para
nós?”
“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por
cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por
dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender
plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de
esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.
Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre
brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os
negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os
judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da
escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres
humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros
têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que
aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem
holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto
educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de
brasileiros.
Essas perguntas se justificam do ponto de vista
moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós.
Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem
desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da
escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.
Educação é um direito de cada brasileiro e também o
vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um
grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante
politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos
democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do
direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse
nacional, do conjunto de todos os brasileiros.
Pena que ainda não descobrimos a força dessa
pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.
*Cristovam
Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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