Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.
A
ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo,
fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a
desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que
uma guerra pode ser.
Contudo,
esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na
condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura
tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro.
É
assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de
arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente
há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da
História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da
ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como
referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e
capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa
trajetória, servir-nos de referência.
Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista?
Estas
são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis
candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck,
Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente
preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas
na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim
o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum,
encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de
aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e,
consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito
diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro
(Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de
um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de
modo instrumental.
Para
tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a
narrativa histórica da ’luta’ – característica daqueles que atiçam a polarização
e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que
são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir
alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da
polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a
narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da
‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos
ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em
nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os
riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não
pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do
‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser
do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo
responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes
avanços.
São
esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro
deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de
nossa trajetória e de nosso futuro. Ou seja, aquele que carrega –
porque identifica, valoriza e comunica – os avanços que tivemos em
nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio
daqueles que só querem reproduzir nossos males.
Assim
não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento
oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por
uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o
verdadeiro centro é só oportunismo?
*Professor
de História Econômica na Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa
(Publicado originalmente em Política Democrática on-line, n. 30, abril de 2021, p.6-8)
Um comentário:
O que nos falta é a cultura política de buscar e fazer acordos a partir de necessidades e conflitos reais, de preferência explicitados. Romper os acordos oligarquicos que impedem que se mexa com os mínimos interesses, inviabilizando qualquer avanço significativo para a sociedade. Isso nada tem a ver com Centro político.
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