Folha de S. Paulo
Caracterizar a escravidão como sistema
econômico é o contrário de legitimá-la
Fazendeiro
branco, escravo negro: a imagem icônica produz a ilusão de que a escravidão
moderna foi um sistema de dominação racial. De fato, porém, foi um sistema
econômico.
A escravidão acompanhou a humanidade
durante milênios. Nas mais diferentes sociedades, inclusive na África, gente de
todas as cores escravizou gente de todas as cores. O capitalismo mercantil
acelerou a produção e o comércio de incontáveis mercadorias –e, também, de
escravos. Na sua moldura, o tráfico atlântico forneceu africanos escravizados
para as Américas.
Nas Américas, o largo
predomínio de escravos africanos resultou da circunstância econômica
de que o tráfico transatlântico garantia oferta regular e barata de cativos.
Africanos não foram convertidos em escravos por serem negros, mas porque o
comércio oceânico despontou como um dos maiores negócios da época.
Na África, reinos poderosos escravizavam seres humanos, conduzindo-os a entrepostos litorâneos para vendê-los aos agentes do tráfico atlântico. Os cativos eram transportados em navios europeus ou norte-americanos.
No Brasil do século 19, ricos traficantes
circulavam na corte como respeitáveis homens de negócios. Alguns eram “negros”,
segundo a atual linguagem binária do racialismo.
A
escravidão era a norma. O escravo figurava como ativo patrimonial e, além
disso, sinalizava a condição social do proprietário. Por isso, os raros
ex-escravos que conseguiam ascender socialmente compravam escravos: o teu
cativeiro simboliza a minha liberdade e a minha prosperidade.
Nada disso é novidade. Tudo o que vai acima
emana da pesquisa histórica consagrada, escrita por autores de todas as cores.
Os militantes da política identitária escolheram, porém, definir a
historiografia da escravidão moderna como uma aberração moral.
Eles exigem que o sistema econômico
escravista seja reinterpretado como um sistema
de dominação racial. Trata-se de uma operação política, não de um esforço
acadêmico de revisionismo. Afinal, se a escravidão foi um crime racial cometido
por “brancos” contra “negros”, torna-se razoável requisitar de todos os
“brancos” o pagamento de “reparações históricas”.
Escravidão e racismo são fenômenos
distintos –e até certo ponto contraditórios. O racismo não era necessário para
a existência de escravidão. Bastava a força, como atestam séculos de
escravização de europeus por europeus, na Europa, e de africanos por africanos,
na África.
O racismo floresceu no outono da
escravidão, como ferramenta para circundar o princípio da igualdade natural
entre os seres humanos e subjugar pessoas juridicamente livres. Otelo só é
“negro” na linguagem atual, moldada pelas noções raciais; na época
de Shakespeare, era um príncipe mouro e um general de Veneza.
Contudo, a distinção entre escravidão e
racismo é qualificada como abominação pela militância racialista, pois assim
pode-se acusar os “brancos” de persistir até hoje num crime deflagrado pelo
primeiro navio negreiro que cruzou o Atlântico.
Caracterizar a escravidão como sistema
econômico é o contrário de relativizá-la ou legitimá-la. No sistema escravista,
ex-escravos (“negros”) tinham a possibilidade de comprar escravos (“negros”) –e
o faziam, quando podiam.
A férrea lógica do escravismo tendia a
provocar, portanto, a extinção de sentimentos básicos de solidariedade entre
pessoas que haviam compartilhado a mais terrível experiência de desumanização.
Não existe maior condenação moral da escravidão do que tal constatação.
A escravidão acabou; o racismo, não. O
discurso identitário que divide a sociedade em raças e acusa o contingente
“branco” da população de ser coletivamente responsável pelo crime da escravidão
não erra apenas historicamente. No plano político, a acusação (i)moral semeia
rancores sociais que fertilizam o solo no qual cresce a erva venenosa do
racismo.
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