domingo, 19 de dezembro de 2021

Vinicius Torres Freire: Eleitor de Lula não é mais aquele

Folha de S. Paulo

Memória do período luliano não explica eleitor e opções de um país que mudou muito

A memória dos oito anos bons de Lula dá votos bastantes para o petista ficar na liderança das pesquisas, de longe, ainda mais porque os últimos oito anos foram de um empobrecimento que agora se degrada em miséria, desespero e destruição. É o que diz o lugar-comum, em parte de obviedade razoável.

Mas quem de fato se lembra ou tem condições de se lembrar dos anos lulianos? Lembra-se em quais termos? Por que o passado seria necessariamente mais relevante do que a promessa ou a excitação de uma novidade? A novidade até pode ser Lula, mas não é essa a questão.

O eleitorado não é um conjunto estável de pessoas de vida eterna ou de experiências imutáveis. Cerca de 31% dos eleitores que poderão ir às urnas em 2022 não tinham idade para votar em Lula 2, em 2006. Quase 23% do eleitorado de 2022 não terá tido idade legal para votar em Dilma Rousseff 1 (2010).

Claro que o eleitor mais jovem tem uma ideia de Lula, de lembranças juvenis ou mesmo infantis até interpretações que se formaram em conversas com família e amigos; no trabalho, em algum tipo de associação, no debate político. Aliás, esse é também o caso também do eleitor mais velho, embora em outra chave, pautada por uma experiência mais direta da vida naqueles anos.

Sim, tudo isso ainda parece tão óbvio e intuitivo. No entanto, se dá de barato o peso da memória, sem mais, assim como o contraste entre aqueles anos de algum progresso (como também foram os de FHC) e os de horror e destruição recentes. Como se, para o bem ou para o mal das possibilidades eleitorais de Lula ou de outros, debates e reinterpretações do passado e uma imaginação de outro futuro não pudessem ser relevantes.

É como se não houvesse gerações. Como se o país não tivesse passado por mudanças sociais importantes, que acabaram por gerar eleitores com outros modos de perceber o que vai ser apresentado no cardápio político dos próximos meses.

Considere-se a religião, que por motivos variados voltou a ser assunto político central. Pouco antes da eleição de Lula 1, no ano 2000, os evangélicos eram 15,4% da população; em 2010, fim de Lula 2, eram 22,2% (dados do Censo). Em 2020, eram 31%, segundo o Datafolha.

Não quer dizer que aquelas pessoas chamadas genericamente de "evangélicas" se enfileirem como gado para votar nisto ou naquilo. Quer dizer apenas e outra vez o óbvio: que uma parte cada vez maior do país vê o mundo com outros olhos, de uma fé absorvente.

No que interessa em termos políticos ou sociais, quase não havia smartphones em 2010. Muito menos gente chegara ao ensino superior. A mudança do trabalho é imensa. Alguém ouve falar de centrais sindicais? O precariado imenso, por sua vez, não tem representação organizada forte.

A economia e a cultura do mundo neosertanejo não tinham tamanha força ou representatividade social e política. O racismo, o machismo, a homofobia e violências similares não eram assunto de debate público amplo ou motivo de ódio militante aberto, como instrumento político (sim, o ódio estava lá, fervendo de outro modo).

A mudança social não determina a política, menos ainda eleição, claro. São engrenagens de tamanhos diferentes, que se movem em tempos diferentes, que se influenciam de modo difícil de discernir e ainda menos de prever, para o azar sempiterno da sociologia.

Se quer dizer apenas que a conversa e as possibilidades estão abertas, não apenas de candidaturas e de programas, abertas inclusive para marquetagens que toquem em nervos sensíveis ou se aproveitem da desordem ruinosa (Collor, Bolsonaro). A mera inspeção do que ocorreu no ano anterior a cada eleição sugere que pode haver mudança, por acidente político que seja, mas não apenas.

 

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