Folha de S. Paulo
Memória do período luliano não explica
eleitor e opções de um país que mudou muito
A memória dos oito anos bons de Lula dá votos
bastantes para o petista
ficar na liderança das pesquisas, de longe, ainda mais porque os últimos
oito anos foram de um empobrecimento
que agora se degrada em miséria, desespero e destruição. É o que diz o
lugar-comum, em parte de obviedade razoável.
Mas quem de fato se lembra ou tem condições
de se lembrar dos anos lulianos? Lembra-se em quais termos? Por que o passado
seria necessariamente mais relevante do que a promessa ou a excitação de uma
novidade? A novidade até pode ser Lula, mas não é essa a questão.
O eleitorado não é um conjunto estável de
pessoas de vida eterna ou de experiências imutáveis. Cerca de 31% dos eleitores
que poderão ir às urnas em 2022 não tinham idade para votar em Lula 2, em 2006.
Quase 23% do eleitorado de 2022 não terá tido idade legal para votar em Dilma
Rousseff 1 (2010).
Claro que o eleitor mais jovem tem uma ideia de Lula, de lembranças juvenis ou mesmo infantis até interpretações que se formaram em conversas com família e amigos; no trabalho, em algum tipo de associação, no debate político. Aliás, esse é também o caso também do eleitor mais velho, embora em outra chave, pautada por uma experiência mais direta da vida naqueles anos.
Sim, tudo isso ainda parece tão óbvio e
intuitivo. No entanto, se dá de barato o peso da memória, sem mais, assim como
o contraste entre aqueles anos de algum progresso (como também foram os de FHC)
e os de horror e destruição recentes. Como se, para o bem ou para o mal das
possibilidades eleitorais de Lula ou de outros, debates e reinterpretações do passado
e uma imaginação de outro futuro não pudessem ser relevantes.
É como se não houvesse gerações. Como se o
país não tivesse passado por mudanças sociais importantes, que acabaram por
gerar eleitores com outros modos de perceber o que vai ser apresentado no
cardápio político dos próximos meses.
Considere-se a religião, que por motivos
variados voltou a ser assunto político central. Pouco antes da eleição de Lula
1, no ano 2000, os evangélicos eram 15,4% da população; em 2010, fim de Lula 2,
eram 22,2% (dados do Censo). Em
2020, eram 31%, segundo o Datafolha.
Não quer dizer que aquelas pessoas chamadas
genericamente de "evangélicas" se enfileirem como gado para votar
nisto ou naquilo. Quer dizer apenas e outra vez o óbvio: que uma parte cada vez
maior do país vê o mundo com outros olhos, de uma fé absorvente.
No que interessa em termos políticos ou
sociais, quase não havia smartphones em 2010. Muito menos gente chegara ao
ensino superior. A mudança do trabalho é imensa. Alguém ouve falar de centrais
sindicais? O precariado imenso, por sua vez, não tem representação organizada
forte.
A economia e a cultura do mundo neosertanejo
não tinham tamanha força ou representatividade social e política. O racismo, o
machismo, a homofobia e violências similares não eram assunto de debate público
amplo ou motivo de ódio militante aberto, como instrumento político (sim, o
ódio estava lá, fervendo de outro modo).
A mudança social não determina a política,
menos ainda eleição, claro. São engrenagens de tamanhos diferentes, que se
movem em tempos diferentes, que se influenciam de modo difícil de discernir e
ainda menos de prever, para o azar sempiterno da sociologia.
Se quer dizer apenas que a conversa e as
possibilidades estão abertas, não apenas de candidaturas e de programas,
abertas inclusive para marquetagens que toquem em nervos sensíveis ou se
aproveitem da desordem ruinosa (Collor, Bolsonaro). A mera inspeção do que
ocorreu no ano anterior a cada eleição sugere que pode haver mudança, por
acidente político que seja, mas não apenas.
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