O Estado de S. Paulo
Tanto deputados do PT, há dez anos, como hoje deputados bolsonaristas propuseram fazer do Congresso órgão revisional do STF
Em junho de 2011, pela Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) n.º 33, de iniciativa do deputado Nazareno Fonteles, do PT
do Piauí, impunha-se grave restrição ao poder jurisdicional do Supremo Tribunal
Federal (STF), como forma de combater o “ativismo judicial”. Na justificativa
da emenda, afirmava-se que o STF, sem legitimidade eleitoral, passou a ser um
legislador ativo, criando normas.
Conforme a PEC, a decretação da
inconstitucionalidade de lei só teria eficácia se decidida por quatro quintos
dos ministros do STF. Assim, se 9 dos 11 ministros entenderem estar a lei
eivada de inconstitucionalidade, o vício, então, será reconhecido. No entanto,
se apenas oito ministros considerarem a lei inconstitucional, esta permanecerá
eficaz, por ter a inconstitucionalidade sido acolhida, “tão só”, por três
quartos dos ministros.
A proposta de emenda, “generosamente”, também permite ao STF criar súmula, por decisão de quatro quintos dos seus membros. Mas a súmula só terá força vinculante se tal efeito for outorgado pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.
A decisão técnico-jurídica do STF, fruto de
decisão de quatro quintos de seus membros, ficará, portanto, sujeita ao crivo
do Congresso Nacional, o único que, em sua suprema onisciência, poderá ou não
dar força vinculante a uma súmula!
Em outro dispositivo, chega-se a maior
absurdo: se o STF reconhecer a inconstitucionalidade de uma Emenda
Constitucional, a decisão não terá efeitos imediatos, mas dependerá de
apreciação do Congresso, que julga o julgamento do STF. Se o Congresso rejeitar
a decisão do STF, a matéria será objeto de consulta popular, referendo, para
que o povo diretamente avalie se a emenda é constitucional ou não.
A proposta de emenda ficou em banho-maria
por mais de ano e meio, mas foi agilizada quando o STF declarou, na Ação Direta
de Inconstitucionalidade (Adin) n.º 4.430, relatada pelo ministro Dias Toffoli,
serem inconstitucionais dois artigos da Lei das Eleições, impeditivos de o
recém-criado Partido Social Democrático (PSD) usufruir dos recursos e
comunicação compatíveis com sua representatividade, pois se impunha que o
critério para esses acessos fosse a composição parlamentar da última eleição,
da qual o PSD não participara.
O STF entendeu que, se a criação de partido
político autoriza a migração de deputado para a novel legenda, sem que se possa
falar em infidelidade partidária ou em perda do mandato, essa mudança resulta,
de igual forma, na validade atual da representação política, contando-se os
novos membros.
Tão logo emitido esse julgamento,
declarando a inconstitucionalidade dos preceitos impeditivos da mudança de
parlamentares para novos partidos, foi apresentado pelo deputado do PT Edinho
Silva o Projeto de Lei Complementar (PLC) 14/2013, em clara oposição ao
decidido na referida Adin 4.430, retirando-lhe eficácia.
Por esse projeto de lei (PLC 14/2013), já
então aprovado na Câmara dos Deputados, tornava-se impossível a transferência
dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio
e na televisão aos novos partidos.
O STF reconheceu, em liminar, a ilegitimidade
desse projeto. Foi o bastante para a revolta de parlamentares governistas
invocar o “espírito de corpo” e chamar às falas a “honra” do Congresso, por ter
o STF interferido na apreciação de projeto ainda em votação, intrometendo-se no
curso do processo legislativo.
Em face desses eventos, ressuscitou-se, em
2014, a Emenda Constitucional 33 de 2011, anteriormente aqui lembrada, como
represália, mas por bem ela não vingou.
Agora, ressurge a tentativa de limitar a
liberdade decisória do STF, por emenda constitucional apresentada por deputado
bolsonarista, Domingos Sávio, segundo a qual o Congresso Nacional pode sustar,
por maioria absoluta, decisão do STF, não unânime, transitada em julgado, por
extrapolar “limites constitucionais”!
Qualquer decisão não unânime do STF,
portanto, pode ser anulada pelo Congresso, pois ao Judiciário cabe apenas
assegurar o pleno respeito à lei, e não a sua interpretação, na crença de ser o
juiz a boca da lei elaborada, em nome do povo, pelo Congresso Nacional. Na
justificativa, explica-se dever o Congresso rever decisões não unânimes que
afrontam a vontade da maioria do povo, a lembrar o critério nazista do “são
sentimento do povo”.
Ora, se por vezes, exageradamente, na
aplicação de princípios o juiz cria soluções inovadoras em face do ordenamento,
nem por isso a decisão judicial deve ser a automática incidência estrita da
lei, pois o direito é o que a interpretação for e muito além do contido na
norma.
O STF, como guardião da Constituição,
incomoda. Tanto deputados do PT, há dez anos, como hoje deputados bolsonaristas
propuseram fazer do Congresso Nacional órgão revisional da nossa Suprema Corte.
Há que resistir a este golpe contra a democracia, que pressupõe um Judiciário
independente nas suas decisões e livre intérprete da Constituição, repudiando
que se elejam, como se quer agora, o STF e o TSE como inimigos, para justificar
a afronta a seus membros e aos seus comandos.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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