Senador foi o único a votar contra proposta que libera gasto bilionário às vésperas da eleição
Por Renato Andrade / O Globo
SÃO PAULO - Único voto
contrário à PEC que abre espaço para o governo Jair Bolsonaro
conceder benefícios bilionários faltando três meses para a eleição, o senador
José Serra (PSDB-SP) afirma que a política fiscal terá quer ser repensada
depois do que aconteceu ontem no Congresso.
O tucano pondera que não é contra o aumento
de transferência de recursos para a parcela mais carente da população, mas é
contra os meios empregados pelo governo — e chancelados pelos colegas de Senado
— para fazer isso em pleno ano eleitoral.
Qual a dimensão do estrago
provocado pela aprovação da PEC das bondades sobre a política de
responsabilidade fiscal do país?
Votamos numa tarde uma PEC que autoriza
despesas da ordem de R$ 41 bilhões. Não tínhamos o texto final consolidado da
proposta ainda durante a votação. O texto foi sendo construído ao sabor das
circunstâncias para ser aprovado o quanto antes. Ao final, inscrevemos no Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias um dispositivo que autoriza, para
2022, despesas da ordem de R$ 41 bilhões.
Um conjunto de despesas: transferência de renda para os elegíveis ao Auxílio-Brasil, subsídio à gratuidade para idosos no transporte público urbano e semiurbano, compensação aos estados por crédito de ICMS ao setor de etanol, transferências para caminhoneiros e taxistas, aumento do auxílio-gás.
Alegou-se que a União acumula superávit
primário até aqui. Omitiu-se que a União, de acordo com projeções da IFI, deve
encerrar o ano com déficit primário. Quando incluirmos os juros da dívida, o
resultado nominal, teremos déficit perto de 6% do PIB, aponta o levantamento.
Faremos mais dívida para pagar a conta. O
pior, no caso, talvez nem seja isso, mas os meios empregados. O processo
legislativo orçamentário não existe à toa: por meio de instâncias, regras e
procedimentos, busca-se com ele reduzir os riscos de decisões ruins no âmbito
dos gastos públicos.
Em dois dias, contudo, o Senado preparou
uma PEC para autorizar R$ 41 bilhões em gastos. Fontes de custeio? Haveria
alternativas? Tudo é emergencial, de fato? Por que benefícios aos taxistas, mas
não aos milhões de motoristas de aplicativos que trabalham 12 horas por dia, 6
dias por semana?
A Constituição agora autoriza montantes de
gasto público. Com muita dificuldade, desde 1988, quando fui constituinte,
vimos tentando construir um regramento fiscal para coibir desequilíbrios
fiscais agudos e gastos ineficientes. Aprendemos ontem que, se precisar,
aprovamos uma PEC contra todo o regramento fiscal.
Basta que governo e parlamentares de
ocasião vislumbrem alguma necessidade, inclusive para fins eleitorais. Efeitos
econômicos? Questões distributivas? Viabilidade do gasto? Nada disso importa.
Há abuso de poder político e
econômico na formulação da PEC?
Pelo teor e circunstâncias da PEC, tudo indica que o governo temia ser responsabilizado pelos órgãos e instâncias de controle caso recorresse aos meios previstos no ordenamento jurídico para proceder ao gasto. A PEC reconhece um tal estado de emergência, figura jurídica imprecisa empregada para afastar as vedações da lei eleitoral.
Chegou-se a inserir um dispositivo que
afastava, sem especificar, toda e qualquer restrição que possa haver no
ordenamento jurídico aos gastos autorizados pela PEC. Ao final, é como se o
Senado tivesse operado como o testa de ferro do governo. O governo poderá
dizer: apenas cumpro o que o Congresso determinou.
A aprovação da PEC somada a
outras medidas adotadas pelo governo e/ou aprovadas pelo Congresso nos últimos
anos forçarão uma rediscussão da política fiscal a partir de 2023?
Não tenho dúvidas de que tanto o regramento
fiscal quanto a política fiscal precisam ser profundamente repensados. Devemos
reconhecer que, a despeito dos esforços de muitos políticos e técnicos, o país
falhou em matéria fiscal. Se alguém tinha alguma dúvida, a aprovação da PEC
Kamikaze a dirimiu.
A inflação atual de dois dígitos, que
empobrece a todos e massacra os mais pobres, e a alta vertiginosa de certas
bases tributárias deram algum alívio temporário às contas públicas, pois as
receitas crescem enquanto itens relevantes de gasto ficam congelados. Esse
efeito passará, contudo. Os déficits permanecerão, se tudo continuar como está.
A quase unanimidade na
votação de ontem é sinal de que o Senado acabou encurralado pelo governo e os
senadores ficaram com medo do efeito do voto nas eleições de outubro?
Acredito que sim. O governo incluiu R$ 26
bilhões para aumentar o benefício do Auxílio-Brasil de R$ 400 para R$ 600 e
acabar com a fila de espera para recebimento do benefício. Outro R$ 1 bilhão
será transferido a famílias para aquisição de gás de cozinha. Há ainda as
transferências para segmentos como caminhoneiros e taxistas. Até parece que
alguns parlamentares opunham-se, mas temiam ficar isolados e ser vistos como
aqueles que votaram contra ampliação das transferências de renda.
O senhor vai disputar uma
vaga na Câmara dos Deputados. Não teme ser prejudicado na corrida eleitoral
pela postura adotada ontem?
De fato, era uma questão muito delicada.
Quem poderia votar contra transferências que aliviarão a fome de milhões de
famílias? Por isso fiz e faço questão de esclarecer meu voto. Toda medida para
acabar com a fome, para atenuar o sofrimento das famílias mais pobres deste
país, terá meu apoio. Eu não votei contra o aumento das transferências, mas
contra os meios empregados, o modo como tudo se deu.
Apresentem medidas sobre o problema e eu me
debruçarei imediatamente sobre elas. Quero acreditar, e as reações ao meu voto
indicam que estou certo, que os brasileiros entenderam minha posição. Muitos
eleitores querem políticos sensíveis aos problemas agudos deste país, como a
fome, mas também responsáveis. Não podemos desprezar os meios, pois os meios
condicionam os fins.
O senhor disse ontem que era
preciso ‘defender quem mais precisa de outra forma’. Que forma seria essa?
No meu entender, a matéria veiculada pela PEC poderia ser objeto de projetos de lei; a autorização orçamentária se daria por créditos ordinários ou extraordinários, a depender do juízo quanto aos pressupostos de cada gasto autorizado. O Congresso deveria discutir eventual necessidade de cortes em outras rubricas, buscar fontes de custeio etc. Que tal, por exemplo, reduzir as emendas de relator? O fundo eleitoral?
Qual deve ser a postura do
STF diante da aprovação da emenda?
Opiniões técnicas respeitadas apontam
inconstitucionalidade na medida, pois violaria a lei eleitoral, afora
tecnicalidades. Eu não poderia, contudo, afirmar qual deve ser a postura do
STF. Mas acredito que aqueles que acusam a Corte de ativismo judicial talvez
comecem a repensar suas posições ao observar iniciativas como essa PEC.
O senhor pensa em apresentar
uma ação na Justiça para questionar a medida?
Eventual ação judicial requer análise minuciosa, pois envolve aspectos jurídicos como separação de Poderes, limites à atuação do Judiciário, questões processuais etc. Por ora, a questão requer muita ponderação.
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