segunda-feira, 24 de outubro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

É cara a conta do uso da máquina na campanha

Valor Econômico

O Congresso, ao aprovar a chamada PEC das Bondades permitiu que Bolsonaro atropelasse a legislação eleitoral

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) falava a uma plateia de 22 prefeitos paraibanos e beneficiários de programas habitacionais, em março de 2013, quando proferiu uma frase que ficou famosa: “Podemos fazer o diabo quando é hora de eleição, mas, quando se está no exercício do mandato, temos de nos respeitar, pois fomos eleitos pelo voto direto”. Neste ano, o presidente Jair Bolsonaro (PL) deu nova dimensão à declaração.

Naquela ocasião, é preciso recordar, Dilma estava envolvida numa campanha antecipada. Em seu discurso, buscou destacar que seu governo sempre respeitara os políticos de partidos da oposição, a despeito das paixões eleitorais. Em mais um deslize verbal, no entanto, acabou dando munição a adversários.

Mas a ex-presidente não falou nada de diferente do que sempre ocorreu em disputas eleitorais. E, de fato, fez-se o diabo naquele pleito. Os impactos fiscais foram sentidos por vários anos.

Hoje, vive-se uma situação perigosamente semelhante. Foi o que mostrou o Valor Fiscal na semana passada. De acordo com a reportagem, as medidas lançadas pelo governo federal para aumentar despesas sociais em pleno período eleitoral tiveram impacto direto de pelo menos R$ 68 bilhões nos cofres públicos somente neste ano. E com um agravante: a tendência é que as medidas deixem um rombo para as contas públicas em 2023, num momento em que o país precisará rediscutir um novo marco fiscal.

Em meio a uma crescente preocupação com a inadimplência, outros R$ 87 bilhões foram oferecidos em créditos para as micro e pequenas empresas, que puderam também renegociar R$ 20 bilhões em dívidas tributárias. Já os beneficiários do Auxílio Brasil tiveram a permissão para tomar empréstimos consignados usando o benefício como garantia, com as operações chegando a R$ 1,8 bilhão. Além disso, trabalhadores receberam a oportunidade de sacar R$ 30 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

O impacto no ano que vem é dado como certo. Isso porque, nas últimas semanas, foram anunciadas medidas com impacto futuro. Um exemplo é o pagamento do 13º do Auxílio Brasil para mulheres, em 2023, no caso de vitória de Bolsonaro no próximo domingo. Em outra frente, será também permitido o uso de parcelas a receber do FGTS para obtenção do financiamento da casa própria, algo que os bancos só esperam colocar em prática em 90 dias.

Se reeleito, o presidente também terá que cumprir a promessa de elevar o Auxílio Brasil de R$ 405 para R$ 600. O gasto adicional a ser encaixado na proposta orçamentária seria de R$ 52 bilhões. A desoneração de combustíveis já consta do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023, a um custo de R$ 52,9 bilhões.

Integrantes do governo defendem que o Brasil teve um ganho estrutural de arrecadação nos últimos anos, o que abriria espaço para cortes de impostos. No entanto, o futuro das contas públicas é uma incógnita.

É inegável que essas ações ajudaram a melhorar a avaliação de Bolsonaro. Por isso, não surpreende a informação de que na campanha do presidente existe a expectativa de que ocorram novos anúncios nos próximos dias. O foco permaneceria em medidas que facilitem o acesso a linhas de crédito e na área tributária.

Diante desse cenário, fica difícil refutar que Bolsonaro colocou, sim, a máquina para trabalhar por sua reeleição. E ela está a todo vapor.

O Congresso Nacional tem responsabilidade por esta situação. Ao aprovar a chamada PEC das Bondades, que reconheceu um estado de emergência, permitiu que Bolsonaro atropelasse a legislação eleitoral. Sem ela, por exemplo, seria impossível a criação de benefícios para caminhoneiros. Mas, talvez, a explicação seja a brecha que também foi criada para o pagamento de emendas parlamentares ao Orçamento durante a eleição.

Feito o estrago, a oposição também não reagiu a tempo. Temendo um efeito eleitoral negativo se contestasse na Justiça algo que beneficia os eleitores, sobretudo os mais pobres, fez cálculos políticos e acabou decidindo não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). Se isso foi um erro tático, o resultado das eleições irá demonstrar. O que se deve continuar esperando, contudo, é uma atuação mais assertiva por parte do Ministério Público Eleitoral.

Só educação reduz dependência de ajuda do Estado

O Globo

Nunca tantos brasileiros estiveram sem renda do trabalho, dependendo de auxílios do governo para sobreviver

Nunca se trabalhou tão pouco no Brasil. Pelos números compilados pelo sociólogo Rogério Barbosa, da Uerj, 38,7 milhões — população equivalente à do Canadá — vivem em lares sem nenhuma renda do trabalho. “Isso significa que estão vivendo exclusivamente de rendas assistenciais, de estratégias precárias e de previdência de baixa remuneração”, afirmou Barbosa ao GLOBO. Não há como considerar normal uma situação dessa natureza.

Depois da pandemia, o quadro se agravou. Recursos que muitos auferiam na informalidade não voltaram aos mesmos patamares. Estes empobreceram e agora têm vínculos ainda mais frágeis com o mercado de trabalho. Numa faixa de 2% da população, estão 4 milhões que não recebem nenhum tipo de remuneração. Esse percentual nunca havia chegado a tal nível, o dobro do que era em 2012. Estão nesse grupo os que não contribuíram para a Previdência o suficiente para se aposentar ou não têm idade nem preenchem as condições necessárias para receber o Benefício de Prestação Continuada, o BPC (ter mais de 65 anos e comprovar ser incapaz de se sustentar sem o auxílio).

Parte da causa dessa tragédia social está na economia que, quando cresce, cresce pouco, sem gerar empregos e renda na medida que as famílias precisam. Mesmo no mercado informal. O Brasil precisaria de um crescimento estável na faixa de 4% ao ano para reativar os investimentos na economia e gerar empregos de qualidade.

O empobrecimento da população se dá de várias formas. Muitos perderam o pouco capital que tinham, “coisas simples, como uma barraca, um carrinho de pipoca, para conseguir se manter ou pelo menos alugar”, na descrição do economista Naercio Menezes Filho, diretor do Centro de Pesquisa Aplicada do Insper e professor na USP.

Há questões mais complexas, nem por isso menos graves. Menezes chama a atenção para as mudanças no mercado de trabalho. Tarefas simples, repetitivas e manuais são cada vez mais substituídas por máquinas e sistemas de inteligência artificial. “Os empregos formais estão sendo criados para tarefas não repetitivas que exigem capacidade de negociação e análise”, afirma.

Ele cita o setor de centrais de atendimento telefônico, onde atendentes vêm sendo substituídos por robôs. O avanço tecnológico já afeta o emprego no Nordeste, para onde foram grandes centrais em busca de mão de obra farta e barata. Com o avanço da automatização, a região passou a perder essa vantagem na atração de certo tipo de empresas. Hoje, 25,7% da população nordestina vive em domicílios sem renda de trabalho e, dos ocupados, 57,1% estão na economia informal.

Esse cenário social de extrema dificuldade é o argumento mais convincente em favor da melhoria da qualidade do ensino público básico e da execução da reforma do ensino médio. É preciso investir em cursos profissionalizantes que capacitem a mão de obra para as novas exigências do mercado de trabalho, sem deixar de lado, obviamente, a qualidade do ensino nas universidades. Não há escapatória

Racismo contra Seu Jorge em clube gaúcho precisa ser punido com rigor

O Globo

Apenas a punição exemplar dos agressores poderá ajudar a evitar que tais episódios repugnantes se repitam

Os ataques racistas abjetos sofridos pelo cantor Seu Jorge depois de um show no clube Grêmio Náutico União, em Porto Alegre, precisam ser devidamente investigados, e seus culpados punidos de forma rigorosa. Trata-se de mais uma demonstração de quão insidioso e persistente é o racismo na sociedade brasileira.

Não há outra explicação para parte da plateia que foi assistir ao espetáculo pelas qualidades artísticas ter, de uma hora para outra, começado a vaiar o cantor, gritando “macaco” e imitando grunhidos dos símios, comportamento repugnante, infelizmente ainda frequente nas arquibancadas de alguns jogos de futebol na Europa ou na América do Sul. O governador do Rio Grande do Sul, Ranolfo Vieira Júnior (PSDB), pediu desculpas públicas ao cantor em nome dos gaúchos — o mínimo que poderia fazer — e garantiu isenção e celeridade nas investigações a cargo da Delegacia de Combate à Intolerância (DPCI) e do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV).

O presidente do clube, Paulo José Kolberg Bing, usou a velha e inaceitável estratégia de culpar a vítima. De acordo com Kolberg, a reação racista foi resultado de um “gesto político” de Seu Jorge. Na verdade, ao apresentar o jovem instrumentista Pedrinho da Serrinha, de 15 anos, o cantor comentou que, quando se olha para um garoto de 15 anos e ele é branco, continua-se vendo um adolescente, “mas muitas vezes, quando a gente olha para um adolescente negro de 15 anos, a gente pensa em redução da maioridade penal”. Ora, Seu Jorge tem o direito a ter e a expressar a opinião que quiser sobre o assunto. O mínimo a exigir da plateia que pagou para assistir a seu show é um comportamento civilizado e respeitoso. Kolberg tentou, mas não conseguiu justificar o injustificável —é impossível.

Desde 1951, racismo e injúria racial são punidos no Brasil em sucessivas formulações da lei, até com cadeia se assim decidir o juiz. São crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Mesmo que ainda falte, segundo juristas, base legal mais sólida para punir o racismo implícito e sutil, a legislação é mais que suficiente para dar conta de aberrações como a que vitimou Seu Jorge.

As agressões a Seu Jorge são simplesmente inadmissíveis. Não podem ficar apenas registradas como mais uma demonstração explícita de racismo. A reação dos procuradores e juízes que se debruçarem sobre o caso precisa servir de exemplo. Só a punição rigorosa a todos aqueles que participaram da barbárie ajudaria a evitar que casos do tipo se repitam e a deixar claro que, no Brasil, é intolerável qualquer tipo de racismo .

Distorção eleitoreira

Folha de S. Paulo

Salto do número de famílias de só uma pessoa evidencia falhas no Auxílio Brasil

A brutal intervenção eleitoreira promovida por Jair Bolsonaro (PL) na economia e na despesa pública teve como principal medida, sem dúvida, o aumento do Auxílio Brasil. Se a ampliação da assistência social era um imperativo do pós-pandemia, o improviso e o oportunismo de Executivo e Congresso gerou distorções graves que vão desafiar a próxima gestão.

Para início de conversa, sobressai o impacto orçamentário. Só a elevação repentina do benefício de R$ 400 para R$ 600, que o candidato promete estender indefinidamente se reeleito, já acarretou dispêndio de R$ 10,9 bilhões adicionais desde agosto, segundo levantamento do portal UOL.

Não para por aí. Somem-se na súbita prodigalidade o aumento precipitado de beneficiários, os empréstimos consignados da Caixa vinculados aos pagamentos futuros, auxílios para caminhoneiros, taxistas e aquisição de gás.

Ninguém sabe ao certo como o futuro presidente, qualquer que seja, cobrirá o rombo crescente. O Orçamento para 2023 enviado ao Legislativo não dá conta do atual gasto assistencial, enquanto outras áreas prioritárias, como educação e ciência, vivem sob ameaça de cortes de verbas.

O caráter açodado das medidas ocasiona outro problema: a desorganização do Cadastro Único, ferramenta indispensável na modernização da assistência social prestada pelo Estado brasileiro. Talvez o melhor exemplo desse desvio esteja na explosão recente do número de famílias unipessoais.

O aumento inaudito foi objeto de reportagem do jornal Valor Econômico. Unidades familiares com uma só pessoa passaram de 3,78 milhões, em julho, para 5,32 milhões, em setembro. Compunham 15,2% do cadastro em novembro de 2021; hoje são nada menos que 25,8%.

Não existe explicação demográfica imaginável para tamanho salto. A razão mais plausível é o desenho descuidado das sucessivas mudanças introduzidas pelo governo Bolsonaro no antigo Bolsa Família, turbinado como Auxílio Brasil.

Criou-se um piso de pagamento que não considera o número de integrantes da família. Em outras palavras, um incentivo claro para que a composição das famílias se fragmente de modo artificial, para não dizer fraudulento.

Seria tão fácil quanto de um moralismo vazio incriminar pelo expediente famílias que mal sobrevivem com até R$ 210 de renda por pessoa. Cabe ao poder público fechar brechas para a deturpação e a perda de eficiência de políticas sociais, mas não há como esperar mais que descaso de um governo que neste momento só tem olhos para os impactos eleitorais.

Crença e voto

Folha de S. Paulo

Democracia deve aceitar influência da religião, mas preservar o Estado laico

Em pesquisa do Datafolha, 49% dos eleitores brasileiros dizem dar muita importância à religião ou à fé do candidato na hora de definir seu voto, o que ajuda a explicar a exploração incessante do tema por Jair Bolsonaro (PL) e os esforços tardios de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reduzir a desvantagem no meio evangélico.

Quem tomar o dado pelo valor de face terá motivos para temer que se enfraqueça no Brasil a laicidade do Estado. Existem, de fato, razões para inquietação, mas o panorama talvez não seja tão sombrio.

O primeiro ponto a destacar é que o processo de definição do voto não é transparente nem para o próprio eleitor. Pouca gente dirá que são os índices de inflação que determinam seu voto, mas estudos mostram que o ritmo dos preços é um dos fatores que, isoladamente, mais influenciam o eleitor.

Valores, embora não possam ser descartados como elemento definidor do sufrágio, costumam aparecer com mais saliência num segundo momento, quando o eleitor elabora uma racionalização para seu voto. Aí surgem explicações mais elevadas, como a crença, os imperativos éticos, o altruísmo.

Mesmo que a religião não ocupe um lugar tão central na definição do voto quanto a leitura sem filtros do dado do Datafolha pode sugerir, não há dúvida de que a questão religiosa vem, pleito a pleito, ocupando mais espaço nos embates políticos. Parte disso se deve ao crescimento das igrejas evangélicas.

Religiões em busca de arregimentar adeptos não raro apostam numa retórica mais veemente, às vezes até agressiva, que não fica limitada ao terreno da teologia —invadindo também a pauta de costumes e a política.

Idealmente, questões religiosas não deveriam vazar para a discussão política. "Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22:16-22). Na prática, porém, a democracia, para manter-se democrática, precisa aceitar as influências da religião.

O que a democracia pode e deve exigir de todos é que aceitem a laicidade do Estado como cláusula pétrea da Constituição. Se os cidadãos têm o direito de professar a crença que preferirem, o poder público tem o dever de manter-se neutro em relação a todos os credos, majoritários ou minoritários, e também à ausência de crença.

Os religiosos são os principais interessados em preservar esse arranjo, pois é a única garantia de que o credo hoje dominante não venha a ser perseguido amanhã se a demografia religiosa mudar.

E Bolsonaro venceu

O Estado de S. Paulo

Mesmo que perca a eleição, Bolsonaro conseguiu o que queria: degradar o debate público. Há 20 anos, Lula teve que garantir estabilidade econômica; hoje, jura que não fechará igrejas

A exemplo do que ocorreu na disputa presidencial de 2002, o petista Lula da Silva se viu novamente obrigado a apresentar uma carta pública para debelar resistências à sua candidatura e criar um ambiente de confiança diante da perspectiva de sua vitória no próximo dia 30. Mas a diferença entre os dois casos é gritante: se há 20 anos Lula teve que se comprometer com a estabilidade econômica, um tema que interessava a todo o País, agora o petista teve que jurar, numa Carta Compromisso com Evangélicos e Evangélicas, que não pretende fechar igrejas nem perseguir cristãos, como o acusa o presidente Jair Bolsonaro.

Trata-se de um assunto totalmente fabricado pelo bolsonarismo, sem qualquer conexão com a realidade nem, muito menos, com o interesse nacional. Ainda assim, o debate eleitoral, que deveria estar voltado para a discussão dos reais problemas do País, foi capturado por essa falsa polêmica, graças ao terrorismo religioso promovido por pastores evangélicos alinhados a Bolsonaro.

Assim, ainda que perca a eleição do próximo dia 30, Bolsonaro pode se considerar um vitorioso: degradou miseravelmente o debate público, conduzindo-o para o campo da desinformação sistemática e do vale-tudo, onde o bolsonarismo joga em casa. Ungido por sua formidável máquina de agitação e propaganda como o “messias” que salvará os cristãos da imoralidade esquerdista, Bolsonaro foi dispensado de explicar os inúmeros erros de seu governo e de dizer o que pretende fazer nos próximos quatro anos. Ao tentar manter os eleitores em transe místico, esse falso profeta escapou do julgamento moral sobre sua criminosa transformação do Estado brasileiro em máquina a serviço de seus interesses eleitorais.

Ao contrário do que a litania bolsonarista pretende fazer supor, no entanto, o apocalipse não está próximo, e há um país com muitos problemas a ser governado. Comparar o Brasil de 2002 ao Brasil de 2022 é reconhecer que o País mudou muito e, ao mesmo tempo, continua essencialmente o mesmo. Os desafios econômicos e sociais são quase idênticos há 20 anos, e incluem a necessidade de reformas estruturantes, políticas sociais consistentes e o equilíbrio fiscal como condições para o crescimento. Nenhum desses temas, no entanto, foi discutido com profundidade durante a campanha neste ano. Pelo contrário: o baixíssimo nível prevaleceu, para deleite dos fanáticos bolsonaristas que vibram com a falta de decoro e decência de seu “mito”.

Problemas muito palpáveis e visíveis, como o avanço da miséria, o retorno da fome, o aumento da inflação e o pífio crescimento econômico – legados do governo Bolsonaro –, cederam lugar a discussões falso moralistas baseadas em desatinos, como o fim da família, a ameaça de fechamento de igrejas, a legalização das drogas, a liberação do aborto e a imposição de banheiros unissex para crianças em escolas, assuntos que nem sequer fazem parte das atribuições da Presidência da República. Incapaz de sensibilizar os pobres que votam em seu adversário, mesmo depois de ter movido mundos e fundos para tentar comprar seus votos, restou a Bolsonaro apelar para o “terreno das crenças e das paixões”, como bem notou Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, em análise no Estadão.

Houve quem tenha avaliado que Lula, se efetivamente quisesse conquistar o voto dos evangélicos, deveria ter apresentado tal carta há muito mais tempo. De fato, um político que almeja ser o líder de uma frente ampla, como é o caso do petista, precisa fazer acenos a todos os segmentos da sociedade, em especial àqueles que lhe são hostis. A resistência do petista em ceder a esses apelos, no entanto, é compreensível, ainda que as pesquisas indiquem que essa atitude possa ter lhe custado votos. A mera existência desse manifesto aos evangélicos, que incluiu a citação explícita de passagens bíblicas e a defesa reiterada da liberdade religiosa que Lula nunca atacou nem ameaçou, é a prova cabal de que Bolsonaro capturou a pauta nacional, transformando a eleição em “Juízo Final”.

Segurança climática, direito fundamental

O Estado de S. Paulo

PEC 37, que garante o direito à segurança climática na Constituição, pode fazer das tragédias climáticas páginas de um triste passado de descaso com proteção do meio ambiente

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37/2021, que eleva a segurança climática à condição de direito fundamental dos cidadãos a ser assegurado pelo texto constitucional. Trata-se do primeiro, mas importantíssimo passo dado pelo Congresso para aproximar o Brasil dos países civilizados, ou seja, das nações que, por não negarem as pesquisas científicas, adotaram o combate às mudanças climáticas como uma das pautas prioritárias da agenda global no século 21.

De acordo com o texto aprovado pela CCJ, a PEC 37/2021 insere a garantia da segurança climática aos brasileiros em três artigos da Constituição. A proposta altera o caput do artigo 5.º, incluindo “o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a segurança climática” no rol dos direitos fundamentais, ao lado do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

No artigo 170, é acrescido o inciso X para fixar a “manutenção da segurança climática, com garantia de ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas” como um dos princípios da Ordem Econômica e Financeira Nacional.

Por fim, a PEC 37/2021 acrescenta um inciso (VIII) no parágrafo 1.º do artigo 225 para estabelecer, expressamente, a obrigação da administração pública de “adotar ações de mitigação das mudanças climáticas e adaptação a seus efeitos adversos, com vistas a assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

O avanço da tramitação da PEC 37/2021 na Câmara dos Deputados premia a resiliente mobilização de organizações da sociedade civil que, ao longo de muitos anos, trabalham para que o Estado adote políticas públicas mais efetivas para a proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

A Constituição é a materialização do pacto social. Portanto, consagrar a segurança climática no texto constitucional como um dos direitos fundamentais dos cidadãos significa dizer que a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, entendeu se tratar de um bem comum imprescindível; e que os governos, nas três esferas administrativas, devem promover, na medida de suas responsabilidades, políticas públicas voltadas à sua consecução.

A bem da verdade, direitos fundamentais garantidos pela Constituição são reiteradamente violados no País, das mais diversas formas e nas mais distintas situações. Isso não significa, contudo, que garantir a segurança climática no texto constitucional seja apenas uma formalidade, nem tampouco uma espécie de “prestação de contas” do Poder Legislativo a todas as organizações da sociedade civil sem potencial para gerar resultados práticos. Estabelecer a segurança climática como um direito fundamental que paira muito acima das vontades de governantes de turno, sem dúvida, será uma grande conquista civilizatória dos brasileiros. O texto constitucional vincula governo e sociedade.

“A aprovação dessa PEC traz fundamentação muito importante para as demandas judiciais e extrajudiciais”, disse ao Estadão Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. Para a especialista, a aprovação da PEC 37/2021 “vai lastrear avanços nas diversas políticas públicas referentes à questão climática, envolvendo mitigação e adaptação, e por isso temos de comemorar o avanço desse processo”.

Esse é o mesmo entendimento de Mauricio Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), para quem “a PEC 37/2021 é relevante e avança com políticas de proteção ambiental no Brasil, em consonância com os esforços globais contra as mudanças do clima”.

A proposta ainda precisa ser aprovada em plenário por 3/5 dos deputados e 2/3 dos senadores, em dois turnos de votação em cada Casa Legislativa. É fundamental para os brasileiros, da atual e das futuras gerações, que a PEC 37/2021 siga esse bom caminho até a promulgação. Na prática, tragédias climáticas como as ocorridas neste ano no Rio de Janeiro, em Pernambuco e na Bahia, sem falar no desmatamento e na mineração ilegais, poderão fazer parte de um triste passado de descaso com a proteção ambiental.

Desrespeito aos idosos

O Estado de S. Paulo

Aposentados e pensionistas continuam sendo vítimas de assédio por parte de instituições financeiras

Aposentados e pensionistas no País inteiro, como noticiou recentemente o Estadão, continuam sendo vítimas de assédio por parte de instituições financeiras com a oferta de empréstimos consignados “já aprovados”. Só quem passou pela experiência sabe o grau de aborrecimento que dezenas de telefonemas e mensagens, às vezes em um único dia, são capazes de provocar. Sem falar em golpes de todo o tipo praticados por criminosos que tentam tirar proveito da boa-fé dos idosos. 

Ora, a lei do mercado não é a lei da selva. Logo, já passou da hora de o governo federal, os bancos, as Polícias, a Justiça e os órgãos de defesa do consumidor darem um basta nessa realidade que tira o sossego de tanta gente. Iniciativas isoladas ajudam, mas não resolvem. Dada a dimensão do problema e o número de atores envolvidos, claro está que somente uma resposta coordenada terá êxito, o que, sem dúvida, exigirá maior protagonismo do governo federal.

O ponto de partida é garantir o sigilo dos dados dos segurados da Previdência Social. Como registrou o Estadão, instituições financeiras e criminosos têm acesso a informações confidenciais, incluindo o valor dos benefícios e o montante que pode ser comprometido nos empréstimos. Inúmeros casos de assédio começam dias após a concessão da aposentadoria ou da pensão pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Não raro, o segurado fica sabendo que seu benefício foi liberado por quem, do outro lado da linha, está lhe oferecendo crédito.

“Eles sabem tudo sobre a gente”, disse ao Estadão o aposentado Adão Alves de Souza, de 71 anos. “Tem pelo menos 50 números bloqueados no meu celular, mas não adianta, pois mudam de telefone o tempo todo.” Até quem acionou o serviço “Não perturbe”, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), conta que continuou sendo importunado. 

Desde 2020, segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), está em vigor a chamada Autorregulação do Consignado, com a participação de 32 instituições financeiras. Um dos objetivos é o combate ao assédio comercial. Outro, a qualificação dos correspondentes bancários, como são chamadas as empresas autorizadas pelo Banco Central a prestar serviço para as instituições financeiras. Aqui há uma brecha a ser investigada: milhares de agentes sem contrato formal e remunerados por comissão atuam nos correspondentes bancários, com acesso aos dados de cada cliente.

Os empréstimos consignados, por óbvio, foram um avanço: sem risco de inadimplência, os bancos cobram juros mais baixos, o que em tese beneficia aposentados e pensionistas. Esse importante segmento do mercado bancário, no entanto, precisa de maior regulação e fiscalização por parte do setor público e do setor privado. O assédio desenfreado a idosos, agravado pela ação de criminosos, demanda soluções urgentes e articuladas. Iniciativas pontuais, promessas e boas intenções não bastam. É preciso atacar o problema nas suas diversas frentes. E agir com o devido rigor.

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