Folha de S. Paulo
Até hoje, me lembro do nosso encontro: uma
capa discreta indagando 'Se um Viajante numa Noite de Inverno'
De onde me encontro, consigo contemplar todo
o meu império. São reinos, países, aldeias e povoados. Milhares de quilômetros
contidos numa prateleira que vai de fora a fora, atravessando cidades
invisíveis e dicionários de italiano.
À moda do imperador Kublai Kahn,
meu trono é a poltrona mais confortável da casa. Daqui sou capaz de explorar,
tal como o enviado especial Marco
Polo, todos os rincões do meu escritor favorito. Basta procurar os
diminutos rabiscos que fiz em suas páginas. Cada "x" indicando um
tesouro.
Neste centenário
de Italo Calvino, busco também a mim mesma do passado que sinalizou, a
lápis, o que precisaria ser relido sempre ("às vezes a gente se imagina
incompleto e é apenas jovem"). Ou revistado, feito parentes.
Gente fantástica, como o barão que subiu às
árvores para jamais descer; o cavaleiro que não existe, mas filosofa dentro da
armadura vazia; o visconde partido ao meio, mas que colado de novo não fica nem
bom nem mau.
Sem esquecer meu agregado pré-Big Bang: o cosmicômico Qfwfq, que mantém com outras partículas do universo o vício em apostas. "No dia 8 de fevereiro de 1926, na Rua Garibaldi, nº 18, a senhorita Giuseppina Pensotti, de 22 anos, sai de casa às 5h45 da tarde e segue para a esquerda ou para a direita?"
De todos os amores difíceis e fáceis que a
literatura pode proporcionar, acredito que o meu por Calvino seja o mais
pulsante de todos. Tanto que, até hoje, me lembro do nosso encontro. Numa
livraria de cinema, uma capa discreta indagando "Se um
Viajante numa Noite de Inverno". Destacando-se entre "Livros que,
se Você Tivesse mais Vidas para Viver, Certamente Leria de Boa Vontade, mas
Infelizmente os Dias que lhe Restam para Viver Não São Tantos Assim".
Viemos juntos para casa. Ele, numa sacola.
Eu, embevecida. Nunca antes na história desta biblioteca um livro havia recebido
tantos "x" em sua marginália. "Você avança na leitura como quem
penetra uma densa floresta." Incautamente. Numa paixão tátil desenfreada,
cheia de outras propostas para o próximo milênio. Nossa relação tornando-se uma
obra completa.
Ao descrever meu bem-amado ítalo-cubano,
penso que o melhor será sempre transcrevê-lo. Fazendo declarações de amor entre
aspas. Afinal, o mesmo trecho que ilustra a primeira noite entre dois amantes
também pode exemplificar o encontro literário quando se dá pela primeira vez.
"Conheceram-se. Ele a conheceu e a si
próprio, pois, na verdade, jamais soubera quem fosse. E ela o conheceu e a si
própria, pois, mesmo já se conhecendo, nunca pudera se reconhecer assim."
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