O Globo
Venda de sangue foi polêmica. Houve gente que enriqueceu e quem tenha se dedicado a teorizar sobre sua natureza mercantil
Manter um suprimento adequado de sangue e
plasma para pacientes que necessitam de transfusão ou hemoderivados —
garantindo o uso adequado e a segurança dos produtos, bem como a prevenção da
transmissão de doenças infecciosas — está entre as principais preocupações das
autoridades nacionais de saúde e instituições internacionais.
Todo ano, milhões de pacientes recebem
transfusões de sangue, componentes sanguíneos ou derivados do plasma para
melhorar sua qualidade de vida e sobrevivência. O Brasil tem uma legislação
adequada e conta com hemocentros responsáveis pela doação de sangue e medula
óssea.
Valores solidários e o modelo de organização do sistema de sangue nacional são compatíveis com países desenvolvidos e recomendações da OMS. Decisões de superar um passado quando se comercializava sangue foram tomadas devido à contaminação de milhares de pessoas e acúmulo de evidências sobre a correlação entre venda, pobreza e infecções que poderiam ser evitadas. O pagamento da doação conforma um ciclo que desestimula atos voluntários e solidários, essenciais para assegurar estoques, inclusive de tipos sanguíneos mais raros.
No passado, a venda de sangue foi polêmica.
Houve gente que enriqueceu e quem tenha se dedicado a teorizar sobre sua
natureza mercantil. Numerosos escândalos de contaminação deram fim às filas de
miseráveis anêmicos, de quem se extraía sangue praticamente em troca de comida.
Durante a pandemia de Covid-19, as preocupações sobre sangue e emergências
sanitárias retornaram aos fóruns especializados. A redução das doações em
função do isolamento social estimulou iniciativas para articular ferramentas de
saúde digital para a convocação de jovens. Ações endereçadas a renovar
constantemente o estoque.
Preocupações com o aproveitamento integral das
doações e preços, especialmente de produtos do fracionamento do plasma, sempre
estiveram nos bastidores. Hemácias e plasma têm requerimentos de uso e
possibilidades de armazenamento diferenciados. Providências para exportação em
troca de redução de preços de hemoderivados e, posteriormente, a criação de
instalações para a produção no país foram adotadas. Mas as dificuldades para a
aquisição e acesso a imunoglobulinas continuaram a desafiar o acesso de
pacientes e os orçamentos da saúde. Estamos longe de ter uma saída fácil, mas
tínhamos acertado uma rota.
As expectativas de ampliação da oferta de
hemoderivados minguaram na gestão de Ricardo Barros no Ministério da Saúde.
Alterações nas atribuições de órgãos do sistema de sangue foram sucedidas por
impasses no armazenamento do plasma e discussões sobre o desperdício e, a
seguir, privatização. Uma sequência de relações causa-efeito leviana e
simplificadora. Mas suficiente para trazer para dentro do Congresso Nacional um
projeto de alteração da Constituição de 1988, sem fundamento científico e
técnico, baseado em arranjos empresariais-políticos improvisados e bizarros.
Contas sobre desperdício do plasma — como se
a transfusão de hemácias fosse um adendo dispensável no dia a dia dos serviços
de saúde — e a desconsideração de plataformas tecnológicas e capacidade de
inovação para o processamento do sangue lembram experiências recentes. A
tentativa de compra de vacinas inexistentes de empresas sem experiência na
produção de imunizantes passou muito longe das propostas de complementação
virtuosa entre público e privado na saúde.
No mesmo momento em que se anunciam
investimentos do PAC na Hemobrás, senadores de oposição tentam obstruir a longa
trajetória da política de sangue pública de um país que tem SUS. Sangue bom é
uma expressão que sinaliza a direção correta: acesso sustentável para quem
precisar de um bem valioso, cujo valor é incomensurável.
*Ligia Bahia é professora da UFRJ
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