O Globo
Vladimir Herzog, jornalista e também
dramaturgo, em menos de 24 horas foi torturado e morto
Quase 50 anos nos separam da manifestação
(com nossos recursos) em apoio ao golpista Bolsonaro e a missa em memória de
Vladimir Herzog (1937-1975). Celebrada na Catedral da Sé, em São Paulo, em
protesto pelo assassinato do jornalista nos porões do DOI-Codi, um centro de
tortura, ela marca o início da queda da ditadura militar. Milhares de pessoas,
dentro e fora da igreja, vigiadas pelos arapongas de sempre, com ostensivas
viaturas policiais no entorno, protestaram contra o arbítrio do regime.
Trata-se de momento seminal e fundador na
História brasileira, visto como o dia em que foi deixado de lado o medo de
enfrentar as forças da repressão. Até então, dezenas de adversários da ditadura
haviam sido mortos, torturados ou “desaparecidos” — e as reações ainda não
tinham alcançado dimensão pública. Com a censura imposta à imprensa, poucas
informações alcançavam a população. Celebrada em ato ecumênico, trazia no altar
o rabino Henry Sobel, o pastor presbiteriano Jaime Wright e o arcebispo de São
Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Como diz no documentário “Coragem”, de Ricardo
Carvalho, disponível no YouTube, o cardeal Arns resumiu a intenção da luta que
ganhava as ruas:
— Os militares não mandam na nossa liberdade.
Dom Paulo, arcebispo paulistano por quase
três décadas, frade franciscano, irmão da notável Zilda Arns, tornou-se um
símbolo contra a ditadura. Sua liderança e carisma mostraram à classe média —
não podemos esquecer: parte dela tinha clamado pelo golpe contra João Goulart —
o engodo do regime militar. Matavam seus filhos sem dó.
Levado para “prestar esclarecimentos”,
Vladimir Herzog, jornalista e também dramaturgo, em menos de 24 horas foi
torturado e morto. Uma foto grosseiramente montada pelos algozes o exibia
pendurado nas grades da janela da cela, alegando suicídio. O DOI-Codi, centro
de repressão dos militares, onde morreram cerca de 70 adversários do regime,
tinha à frente o major Carlos Brilhante Ustra. Identificado como torturador por
diversas de suas vítimas (as que tiveram a sorte de sobreviver), morreu em 2015
idolatrado publicamente por Bolsonaro.
A memória do ato celebrado pelos três
religiosos, quando corriam risco de ser presos e torturados, como já acontecera
com vários outros padres e sacerdotes, diante da manifestação bolsonarista
na Avenida
Paulista, escancara como a fé é manipulada por alguns pastores evangélicos.
Ancorados na isenção de impostos, na pessoa física e jurídica, portanto com
nosso dinheiro, ajudaram a patrocinar ato em defesa de um golpista ameaçado de
prisão. Com o dízimo ofertado a Deus, busca-se cavar na Terra os grilhões do
inferno.
Enquanto Dom Paulo arriscava a vida para
buscar a liberdade num país amordaçado pela ditadura, enquistados seguidores
bolsonaristas usaram as benesses da democracia, que custou a vida de Herzog e
outros heróis, para saudar quem tentou fraudá-la — aos gritos — durante quatro
anos seguidos. De novo, como forjado em 1964 pela direita civil e militar, se
agita o fantasma esquálido do comunismo, antes encenado por Jango, conhecido
latifundiário, e agora na pele de Lula da Silva, que já deu mostras ao longo de
dois governos de ser, se tanto, somente meio esquerdista. Pode ser visto como
um pobre-coitado em conhecimentos históricos, mas nunca um comunista. Gente,
ele indicou o Zanin para o STF!
Na missa em memória de Herzog, testemunhada
por milhares de pessoas, não havia dinheiro público usado em carro de som. Foi
um ato ecumênico, representado por líderes religiosos reconhecidos por suas
trajetórias em defesa da igualdade social. Ali, nenhum deles viajava em jatinho
particular. Celebravam um cidadão literalmente abatido em virtude de suas
convicções pela liberdade e democracia — a mesma que o mal encarnado tentou
liquidar com apoio de alguns pastores e muitos militares hoje acovardados diante
da lei dos homens.
A manifestação bolsonarista, ora veja só,
permitida pela democracia conquistada com o sangue de muitos opositores
assassinados, ocorre quase numa outra chave da História. Poderia ser a homilia
derradeira de Dom Paulo, se estivesse entre nós. Não custa rezar, tomara seja o
último capítulo aguardado diante da imensa ignomínia política brasileira. Desde
a queda da ditadura, enfim, militares golpistas começam a ter de enfrentar a
Justiça. Desta vez, sem anistia.
É um pessoal de sorte. Não serão julgados
por Sergio
Moro.
2 comentários:
E nem serão "interrogados" por BRILHANTE USTRA! Texto magnífico! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho.
Muito bom o artigo,eu só não concordo que o Lula é um ''pobre coitado em conhecimentos históricos''.
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