Folha de S. Paulo
Direitistas traíram e distorceram a
liberdade, mas parte da culpa é dos esquerdistas, que não a deviam ter
abandonado
Quando o presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, ataca
diretamente a liberdade acadêmica de uma universidade como Harvard, fica
muito claro que ele nunca teve verdadeiramente uma agenda de liberdade. Como
tantos autoritários antes dele, a conversa da liberdade foi apenas um meio para
chegar a um fim, o poder, a
partir do qual passou a esmagar a liberdade dos outros.
A culpa principal é de quem participou nessa
perversão ideológica. Há já uma década que duas versões da liberdade têm sido
vendidas pela direita radicalizada. Uma delas é conservadora, patriarca e
nacionalista: a liberdade de
ofender, insultar e degradar, apresentada contra a "ditadura do
politicamente correto" ou do wokismo ou, mais frequentemente, apenas para
chatear a esquerda. Qualquer observador minimamente atento sabia que esse
pessoal nunca quis saber de liberdade.
Uma segunda versão, a dos ultraliberais, era mais genuína: eles acreditavam (e alguns ainda acreditam) em uma versão da liberdade como não interferência por parte do Estado, mas é uma liberdade desidratada. Menos Estado, mais liberdade. Menos impostos, mais liberdade. Não passa disso. É uma liberdade poucochinha, como dizemos aqui em Portugal.
Mas é preciso que a esquerda assuma também as
suas culpas nesse sequestro e subversão da liberdade. Só foi assim tão fácil
para a direita ocupar o espaço semântico da liberdade porque a esquerda, em boa
medida, deixou-o abandonado. Esse jogo foi perdido pela esquerda por falta de
comparecimento, ainda antes de começar.
Grande parte da esquerda deixou que se
tornasse consensual a ideia de que a direita era pela liberdade como a esquerda
seria pela igualdade. Essa ideia não tem qualquer sentido histórico: a
esquerda do século 19 e de grande parte do 20 é uma esquerda da luta pela
liberdade, que é sempre o primeiro valor na tríade revolucionária, com
a igualdade e a tão esquecida e menosprezada fraternidade. Mas sem liberdade,
nada vale a pena.
Outra parte da esquerda convenceu-se de que
andava ocupada com os outros valores —a justiça, em particular a social, ou a
sustentabilidade— sem perceber que a defesa deles só é eficaz se forem
enquadrados num entendimento de raiz libertária: a justiça ou a
sustentabilidade são princípios que asseguram a equilibrada distribuição da
liberdade, numa sociedade ou ao longo do tempo.
Outra esquerda ainda foi incoerente na defesa
da liberdade, desculpando
ditaduras ou violações de direitos humanos por solidariedade táticas, afinidades
históricas ou geopolíticas, ou outras razões espúrias. Mas a liberdade não pode
ser descartável, nem instrumental.
Em resumo, a esquerda tirou os olhos da bola.
E a direita correu com ela por mais de uma década. E com isso ganhou um
eleitorado jovem, urbano, ascendente, proletário, ou simplesmente gente que
sonha com uma pequena independência ou prosperidade para si e para os seus.
Gente que deveria ser o público da esquerda.
Pode ser que agora, que ficou evidente que o
apego de certa direita à liberdade sempre foi fajuto, a esquerda acorde. Só
derrotaremos os populistas de extrema direita se for em nome da liberdade.
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