segunda-feira, 20 de julho de 2009

O oligarca José Sarney

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A cada novo escândalo que lhe afeta, o senador José Sarney tem mais demonstrada sua verdadeira natureza política. Cada vez sobram menos ilusões (para quem ainda as tinha) sobre sua condição de patrono da democracia, que teria conduzido o final do processo brasileiro de transição do regime autoritário, ficando mais nítido o caráter oligárquico de sua liderança. Seu estilo oligárquico marca o longo domínio de seu clã político no Maranhão, que foi apenas brevemente interrompido com a defecção de José Reinaldo Tavares e, depois, com a eleição de Jackson Lago para o governo do Estado. Todavia, com a decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral em cassar o mandato do governador eleito, deu-se a reintegração de posse - e Roseana Sarney pôde retomar o domínio familiar.

Sintoma dessa percepção de que o Estado do Maranhão (que tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano do país) é posse da família foi a pronta reação dos aliados de Sarney à eleição de Lago, em 2006, quando levantou-se a proposta de criar um novo Estado na federação, correspondendo ao sul do que é hoje o Maranhão. Dessa forma se permitiria que nesse novo pedaço as disputas eleitorais fossem menos influenciadas pelo voto urbano de São Luiz - menos subalterno às veleidades oligárquicas do clã local - garantindo assim uma posse mais segura do domínio territorial familiar.

Novas demonstrações de que a família Sarney tem grande preocupação com a coisa pública - ao ponto de tratá-la como se fosse sua - são as revelações feitas nesta semana pelo jornal "O Estado de S. Paulo". Uma neta do presidente do Senado, cujas conversas telefônicas foram gravadas numa investigação da polícia federal, reivindicou o "direito" de indicar o ocupante de um determinado cargo na Casa pelo fato de se tratar de um posto pertencente à família. Certamente, um órgão de Estado que funciona com base neste princípio - da posse privada (familiar ou clãnica) de cargos públicos - não pode operar num registro democrático - e nem republicano.

A lógica subjacente a este modus operandi é a da sociedade estamental - na qual as pessoas se distinguem por seus laços de sangue e pelas afinidades familiares. Neste contexto, ocupa-se um cargo ou desempenha-se uma função (como a intermediação financeira) em virtude do pertencimento a um determinado clã familiar. Isto seria aceitável numa sociedade aristocrática, mas como supostamente vivemos numa república democrática, este tipo de procedimento passa a significar uma clara desvirtuação. E a lógica aristocrática desvirtuada é justamente o que (desde Aristóteles) se denomina como oligarquia.

Se estivéssemos num contexto histórico em que o desvirtuamento fosse o resultado de uma degeneração da aristocracia, isto provavelmente se daria pelo rompimento das tradições, que balizariam o que seria ou não legal. Assim, o oligarca seria o aristocrata que se desvirtua por não mais respeitar as normas que vigoram na própria sociedade estamental em que está inserido. Numa sociedade como essa o problema não está na distinção pouco nítida entre o público e o privado, já que ele é inerente a uma ordem política na qual os laços de sangue e afinidade familiar são o fator determinante da posse dos cargos públicos e do exercício do poder. O problema na verdade surge quando se violam os princípios da tradição que definem como os laços se criam e se perpetuam, ou como se toma posse dos cargos e se exerce o poder.

Não faria nenhum sentido numa república democrática, como o Brasil, falar em desrespeito a princípios aristocráticos. Portanto, o desvirtuamento aqui é justamente trazer a lógica estamental para o âmbito de relações políticas que deveriam se pautar 1º numa relação entre iguais (independentemente de seus laços familiares ou clãnicos) e 2º numa lei que leva em conta outros princípios (o mérito, o voto e a conduta dentro da lei) para a posse de cargos públicos, o exercício de funções de Estado e o julgamento das pessoas. É por isto que são imorais (a) a ocupação de tantos cargos no Senado por apaniguados de Sarney, (b) a atuação de seu filho como intermediário de transações financeiras de servidores da Casa, (c) a reivindicação feita por sua neta, da posse familiar de postos no aparato de Estado e (d) a reivindicação feita por José Sarney, de que não pode ser julgado pelos atos seus e de seus subordinados.

Este último ponto merece destaque. Ao reivindicar que não poderia ser julgado, Sarney colocou-se, sem qualquer cerimônia, como um indivíduo acima dos demais. Neste sentido, colocou-se como um aristocrata acima da plebe; afinal, a justiça que vale para a plebe não pode valer para os nobres, que possuem outra natureza e, portanto, fazem jus a privilégios. Contudo, como isto não faz sentido numa sociedade democrática e republicana, a pretensão aristocrática aqui é uma clara distorção, que torna oligarca quem a reivindica.

Claudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP.

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