• Para sociólogo, novo ministro do STF será sensível a valores sociais na interpretação da lei e das contradições entre o legal e o legítimo
- O Estado de S. Paulo / Aliás
A celeuma quanto à indicação do professor Luiz Edson Fachin para a vaga do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal esconde os aspectos históricos do caso. É importante que a Suprema Corte tenha um ministro com seu perfil. O jurista gaúcho radicado no Paraná não representa, nem pode, um partido político ou uma facção partidária. Ele representa, antes de tudo, uma tendência histórica que só aos poucos se evidencia e ganha presença no cenário social e político do País. É de se presumir que ele será um ministro sensível aos valores sociais dessa tendência na interpretação da lei e das contradições entre o legal e o legítimo à luz do advento histórico de novos sujeitos de direito na cena brasileira.
Frequentemente nos esquecemos de nossos débitos históricos, dos problemas criados e não resolvidos até no passado distante e que, mais cedo ou mais tarde, clamam por solução. Quando são reunidas as condições históricas da solução, independente de pessoas e vontades, as pendências emergem e se resolvem numa direção ou noutra.
Atenho-me ao débito que maiores tensões têm provocado na história brasileira, o da propriedade da terra. Fachin foi questionado quanto à reforma agrária e seus vínculos com os que a reforma defendem. Esse é um tema que abala os nervos dos que veem na proposição da reforma uma ameaça esquerdista ao direito de propriedade. A verdade é que a reforma agrária é uma proposição política conservadora. Nosso Estatuto da Terra e a legislação decorrente foram-nos outorgados pelo regime militar e anticomunista inaugurado em 1964, com o fundamental objetivo de assegurar a ordem em relação ao direito de propriedade. Na direita e na esquerda, enganam-se os que não compreendem a função social e política da reforma.
Longe de ameaçar a instituição do direito de propriedade, a reforma propugna a multiplicação do número de proprietários. Reforça, portanto, a propriedade privada, ao mesmo tempo em que estabelece limites à concepção da propriedade absoluta e abusiva da terra ao introduzir o pressuposto da sua função social, o que já estava na Constituição de 1946. Enganam-se tanto os que combatem o agrorreformismo, na pressuposição de que o direito de propriedade fundiária tem no Brasil uma sólida existência de 500 anos; quanto os que o defendem, especialmente no PT e no MST, supondo que a propriedade privada da terra é entre nós uma iniquidade de 500 anos.
O regime fundiário no Brasil, desde o descobrimento, foi o das sesmarias, cuja lei é de 1375, uma portuguesa lei de reforma agrária, que aqui teve vigência até 1822, substituída em 1850 pela nossa Lei de Terras. No regime sesmarial, mantinha o Estado a propriedade eminente do solo, cabendo ao particular a posse útil. Na ausência de uso produtivo da terra, caía a concessão territorial em comisso, ficando a terra disponível para ocupação por outra pessoa. As iniquidades históricas relacionadas com o chamado latifúndio deviam-se não ao regime sesmarial, mas à escravidão.
A República oligárquica dos coronéis do sertão confirmou essa opção fundiária, em 1889, justamente na medida em que transferiu aos Estados a regulação do acesso às terras devolutas. Pode-se entender o que isso significou quando se tem em conta que a República entre nós nasceu como ditadura militar em oposição aos senhores de terra. Duas tendências históricas opostas marcadas por grande tensão. O que, aliás, foi no básico assinalado justamente por um ministro do Supremo, Victor Nunes Leal, num clássico da Ciência Política brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto.
A Revolução de Outubro de 1930 abriu o caminho para relativizar a concepção de propriedade, com o Código de Águas, de 1934, que separou as águas e a propriedade privada da terra, restituindo-as ao domínio do Estado. Abriu, assim, caminho para o princípio jurídico que relativiza até mesmo a propriedade do solo, no caso das terras de marinha, das reservas florestais e das reservas indígenas, aquelas terras em que a extensão e o uso da terra colidem com a função social da propriedade e o interesse público.
Quando se toca nessas pendências históricas toca-se em complexos de problemas não resolvidos. Movida uma peça no tabuleiro de xadrez da História, outras peças acabam sendo movimentadas. A relativização da concepção de propriedade restaura a eficácia moral e dá estatura política à concepção de pessoa (e ao familismo e comunitarismo correspondentes), em oposição ao crescente predomínio da concepção de indivíduo (e ao individualismo e à coisificação da pessoa resultantes).
Luiz Edson Fachin parece identificar-se com o humanismo da primeira tendência, que reflete as orientações do personalismo, de Emmanuel Mounier, o pensador católico que fundou e dirigiu a revista Esprit. Ele não inaugurará essa tendência no STF. Em anos recentes a Suprema Corte tem sido chamada a opinar sobre questões como a dos territórios indígenas, o consequente direito à diferença e a própria concepção de nacionalidade brasileira.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de a Política do Brasil lúmpen e místico (Contexto)
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