- Valor Econômico
Uma onda de muita intolerância ronda as democracias
Em tempos de Trump, extrema direita europeia e aumento da radicalização política, talvez devamos levar a sério por aqui os pendores neofascistas. Em seu breve ensaio sobre "O que é o fascismo?", George Orwell mostrava como a palavra se tornara, no pós-guerra, um termo com inúmeras serventias e pouco significado, deixando de ser conceito para virar xingamento ou metáfora. Alertava, porém, que o uso leviano do termo não eliminava a coisa à qual se referia.
Um dos modos de produzir a falácia conceitual apontada por Orwell é chamar de fascismo qualquer coisa que a ele possa ser associada por conter traços em comum, por seu posicionamento relativo num determinado espectro, ou por pura distorção.
Exemplo da falácia dos traços em comum foi um experimento feito há poucos anos com determinados congressistas, utilizando-se frases selecionadas de um texto doutrinário do fascismo italiano. O ponto comum em todas essas frases era o enaltecimento do papel do Estado; quanto aos congressistas, não eram amostra representativa do conjunto dos parlamentares. O resultado foi que, de um modo geral, indivíduos de esquerda se mostraram mais concordes com as sentenças do que legisladores de centro ou direita. Conclusão a que chegou o responsável pela enquete: a esquerda é fascista.
O problema de um experimento assim é que comete uma falácia da composição, tomando a parte pelo todo. Tanto socialistas como fascistas são simpáticos a um Estado forte; contudo, como razões e propósitos são distintos, é embuste pinçar descontextualizadamente frases em favor de um Estado forte e testar a concordância com elas como prova de fascismo - ainda mais com amostra de respondentes enviesada. Excetuados liberais e anarquistas, muitos tenderiam a concordar com as sentenças, inclusive conservadores clássicos. Se questionados sobre outras frases do texto fascista, não relacionadas ao papel do Estado, o provável é que liberais e socialistas concordassem, rejeitando-as igualmente.
A falácia do posicionamento relativo é apontada por Orwell em seu ensaio, quando observa que setores da esquerda chamavam aos conservadores de fascistas. Ora, como tanto fascistas como conservadores estavam, por definição, à direita dos esquerdistas, foram postos no mesmo balaio, ainda que se situassem muito distantes uns dos outros. Vemos hoje situação similar, quando alguns denominam "comunistas" todos os situados à sua esquerda.
Por fim, a falácia da pura distorção ocorre quando termos são usados a esmo, pela simples confusão de coisas diversas. Veja-se o caso da reiterada afirmação de que "o nazismo era de esquerda", baseada no fato de a organização de Hitler se denominar "Nacional-Socialista" e se declarar um "partido dos trabalhadores". É este um caso de considerar literalmente o rótulo, ignorando o conteúdo e o fato de que esse rótulo foi um ardil propagandístico para cativar os trabalhadores. Ademais, ignora também a implacável perseguição dos nazistas à esquerda alemã de sua época.
Feitas as ressalvas e considerando as mudanças históricas desde sua forma original, o que se pode chamar na atualidade de fascismo ou neofascismo? O fascismo apresenta características que às vezes se sobrepõem e que, isoladamente, são insuficientes para defini-lo: (1) nacionalismo e patriotismo exacerbados, frequentemente xenófobos; (2) autoritarismo, com uma estética ou retórica violentas; (3) intolerância a grupos minoritários, vistos como ameaça à coletividade; (4) crença no papel crucial de um líder forte; (5) defesa ideológica de uma desigualdade fundamental, seja nacional, racial ou moral.
Se considerarmos as quatro primeiras características, não seria difícil considerar o chavismo fascista. Falta-lhe, porém, a quinta característica - a defesa de uma desigualdade fundamental. O socialismo chavista - como qualquer socialismo - é ideologicamente igualitário, mesmo que na prática produza desigualdade; isso, contudo, diferencia-lhe do fascismo.
O neofascismo europeu combina as cinco características, mas é contido pelo contexto institucional, já que Estados democráticos de direito nacionais e a pressão regional europeia, freiam ímpetos autoritários de líderes e movimentos. Por isso, xenofobia, intolerância em relação a imigrantes e muçulmanos, líderes inflamados e a afirmação da superioridade dos nacionais se expressam mais abertamente do que o autoritarismo. E, na medida em que este potencializaria os demais elementos, sua contenção também refreia o resto.
No Brasil, etnicamente miscigenado e com uma população majoritariamente de pardos e negros, é improvável um movimento fascista de maior alcance que tenha na discriminação racial seu elemento propulsor, apesar de repetidos episódios racistas entre nós. O apelo de um forte discurso nacionalista é plausível, sobretudo na forma de patriotismo, dificilmente se voltando contra imigrantes, não percebidos como ameaças culturais ou econômicas. Já o autoritarismo e a crença em líderes fortes têm raízes profundas por aqui e ressoam com vigor no embate público.
Para que se combinem as cinco características do fascismo, teria de haver também algum tipo de perseguição contra grupos minoritários e a consequente afirmação de uma desigualdade fundamental. Se isso é improvável na forma racial, tem chances de prosperar na de tipo ideológico, moral e religioso: o anti-intelectualismo, a intolerância com a "doutrinação política nas escolas" e com a "ideologia de gênero", o ataque neomacarthista a manifestações artísticas e intelectuais não enquadradas nos "valores da família". Sua consequência é a persecução aos desajustados, equiparados a uma espécie de escória patológica ("esquerdopatas", "gayzistas"), que propagam crenças e adotam modos de vida incompatíveis com a conduta reta dos "cidadãos de bem" e das "pessoas comuns". Neste formato, o fascismo já aparece entre nós e não é difícil identificá-lo.
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Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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