- O Globo
Não podemos deixar de perseguir utopia democrática. Mas precisamos imaginar novas formas de pensá-la
No caos que nos atordoa, às vésperas de uma eleição que nos parece imprevisível e decisiva, o que nos consola é saber que o tempo que vivemos vai passar um dia. E será certamente lembrado como um tempo de tensão, que quase nos levou ao terror. Só não o conseguiu porque, no fim desse tempo, há uma inevitável eleição que todos exigem democrática. Todos os partidos que disputam o sucesso eleitoral se consideram viáveis, não havendo por que evitar ou alterar de modo irregular seu desfecho, por uma facada ou pelos dedos em forma de arma.
A democracia no Brasil, embora desmoralizada pela corrupção, pelo escárnio às leis e pela falta de representatividade, ainda é um valor cujo respeito assegura a viabilidade política do país. Ainda não precisamos argumentar com ameaças sociais para ignorá-la, como na Venezuela. Em vez disso, cada um luta para conquistar o voto dos cidadãos, algo que convencionamos ser indispensável para exercer o poder. Como diz Conrado Hubner Mendes, temos que evitar a raiva, porque “a raiva pode vencer a razão”.
Não sei se esta será a última eleição democrática no país, como alguns analistas julgam e começam a teorizar sobre, em vista do retorno das ameaças militares e do autoritarismo voluntarista da extrema esquerda. Não sei se os campos que sairão frustrados dessas eleições terão disposição e força para romper o compromisso democrático que os levou à urnas, apostando no golpe ou no caos para impor seu projeto. Por enquanto, os interesses múltiplos de todos os lados nos protegem dessas aventuras. Da crise da democracia representativa, entre nós e no mundo, é que ninguém tem como nos proteger.
A eleição de Trump nos Estados Unidos inaugurou escandalosamente o rompimento de um dos princípios de sobrevivência da democracia, a partir de sua proteção pelas leis fundadoras, um mecanismo de relativização de resultados eleitorais que impedia o absolutismo republicano. E disso ninguém é particularmente culpado, nem mesmo o pirado e sórdido candidato eleito.
Como no Brasil, neste momento, é uma ilusão achar que Lula e Bolsonaro, as duas principais representações da radicalização eleitoral, são os culpados pela insegurança que passamos a viver. O recuo do capitão esfaqueado, a negar o que dissera nos jornais e na televisão, não está muito longe da distância entre o que o ex-presidente diz enquanto nomeia, como seu sucessor na candidatura, um de seus mais moderados parceiros de partido.
O que está radicalizando essas próximas eleições não é o que dizem os candidatos ou o programa quase inexistente de seus partidos. O que está radicalizando o processo é o sentimento de uma talvez muito próxima inviabilidade do sistema e a desconfiança sobre o que poderá vir depois. É simplesmente a própria forma da democracia representativa que, por razões diversas, começa a fracassar no mundo inteiro. Não podemos deixar de perseguir a utopia democrática, de jeito nenhum. Mas precisamos imaginar novas formas de pensá-la e exercê-la.
A democracia nasceu numa praça de Atenas, ocupada apenas por uma elite. O sistema serviu para recivilizar e reumanizar o mundo da segunda metade do século XX, o mundo posterior à barbárie da Segunda Guerra. Ele agora está começando a se revelar moribundo. Precisamos salvar o que, na democracia, é necessário para sempre, inventando uma nova forma de vivermos democraticamente.
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O ano vai chegando ao fim, e o cinema brasileiro repete, neste 2018, o mesmo desempenho de quantidade e qualidade do ano passado. Basta ver os bons filmes em cartaz, como “Benzinho”, de Gustavo Pizzi (um grande filme, que acaba de ser nomeado representante do Brasil no prêmio Goya de melhor filme ibero-americano de 2018), “O paciente”, de Sergio Rezende, “O banquete”, de Daniela Thomas, “O animal cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, “Vende-se essa moto”, de Marcus Faustini, “Abrindo o armário”, de Dario Menezes e Luis Abramo, “As boas maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, “O candidato honesto 2”, de Roberto Santucci, “Ferrugem”, de Aly Muritiba, “Missão 115”, de Silvio Da-Rin, “Não se aceitam devoluções”, de André Moraes, “Yonlu”, de Hique Montanari, e muitos outros. Além de “Domingo”, que abriu o Festival de Brasília neste fim de semana, um filme extraordinário de Felipe Barbosa, o mesmo realizador de “Gabriel e a montanha”, destaque do nosso cinema no ano passado.
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