- Valor Econômico
O sistema político entrou em colapso e o vazio criado vem sendo ocupado por partidos caóticos e frágeis
Uma das últimas obras de Federico Fellini - "Ensaio de Orquestra"- em princípio seria uma ode aos instrumentos e à música clássica, mas acabou tornando-se um marco pela sua temática política. Sensibilizado pela radicalização na Itália dos anos oitenta do século passado, Fellini utiliza-se de uma orquestra como imagem de toda a sociedade italiana para explorar alguns caminhos da radicalização política que se vivia à época.
No início dos créditos do filme ouvimos o barulho de trânsito repleto de buzinas, simbolizando uma mescla de desorganização com falta de educação; e isto se concretiza com a chegada dos músicos na capela onde será feito o ensaio da orquestra. Neste momento conhecemos o maestro que, como todo líder, organiza as pessoas e inicia o ensaio. No filme ele tem a fala grossa e, não admitindo os erros dos músicos, os adverte de forma bastante agressiva, quase desrespeitosa.
Logo os músicos, infelizes com a situação "humilhante" a que estão sendo submetidos, se revoltam, quebram cadeiras da capela, cantam e escrevem nas paredes palavras de ordem, jogam dejetos nos quadros de músicos consagrados e acabam substituindo seu regente por um metrônomo. Como em todo processo de radicalização política, prontamente surgem diferenças entre os manifestantes que se encontram perdidos em meio ao caos que criaram; a baderna perdura até que uma tragédia - a morte de um músico - acontece e todos entram em desespero. O momento torna-se propício para o maestro voltar e restabelecer com autoridade a ordem local e, como uma paródia direta a Hitler, volta a comandar seus súditos de forma ditatorial e em alemão.
O filme de Fellini, torna-se mais atraente ao analisarmos o contexto histórico da época na Itália. O lançamento do filme ocorreu no mesmo ano do sequestro e assassinato do primeiro ministro, Aldo Moro, pelas Brigadas Vermelhas. Se levarmos a metáfora de "Ensaio de Orquestra" ao pé da letra, temos a Itália como uma orquestra confusa e mal ministrada. Mas seu autor vai adiante e projeta que em situações de radicalização, como a vivida pela Itália, algum evento violento externo vai trazer um novo equilíbrio e racionalidade.
Fellini imaginou este evento como a chegada - inesperada e vindo do nada - de uma imensa bola de aço, destas usadas na destruição de velhos edifícios, e que quase destrói a capela. Este choque violento abre espaço para a volta do maestro e, com ele, da ordem profissional entre os músicos. Por ter usado esta imagem tão forte ele foi acusado pela esquerda como tendo cores fascistas.
Feitas todas as vênias sobre as diferenças que existem entre a sociedade italiana à época e a brasileira nesta véspera das eleições presidenciais, não posso deixar de chamar a atenção de meus leitores para o filme Ensaio de Orquestra. Nele estão descritas reações que podemos encontrar no Brasil de hoje. Em primeiro lugar, a ausência de um maestro que traga uma referência de liderança, autoridade e funcionalidade para a democracia brasileira. E qual seria este maestro que, como no filme, também foi expulso de seu púlpito e substituído por um mero metrônomo? Claramente é a classe política brasileira, execrada por sua conduta no passado, excluída e submetida hoje a um controle ético e moral externo ao Parlamento.
Tal como o metrônomo de Fellini, este sistema assumiu a função de separar o que entende por ¨o joio e o trigo¨ no sistema politico brasileiro. Qualquer identificação com uma atividade pretérita no parlamento ou no executivo, o metrônomo emite o sinal de rejeição ao candidato e a imprensa repercute na busca da condenação popular na hora do voto nas urnas eletrônicas. Seu discurso é o de excluir os representantes do passado e abrir espaço para o novo, sem que isto esteja inscrito na nossa Constituição.
São sinais claros do funcionamento deste novo centro de poder os recentes pedidos de condenação de políticos tradicionais e que ousaram se candidatar nas eleições de outubro próximo. Outras vítimas do metrônomo são políticos de expressão que, ao avaliar os riscos de um massacre público, simplesmente desistiram de se candidatar. Com isto, o sistema político hoje existente entrou em colapso e o vazio criado vem sendo ocupado por partidos ainda mais caóticos e frágeis e por lideranças sem a menor experiência na gestão da chamada coisa pública a da articulação política no parlamento.
Um dos exemplos mais gritantes do caos criado por esta situação é o fato de que o candidato a vice-presidente da chapa líder das intenções de voto, vir a público defender uma Constituinte de notáveis, sonho de consumo da direita autoritária e fora da tradição de nossa democracia. Ainda na mesma direção, o programa econômico do PT defende a volta da chamada nova matriz econômica que jogou a sociedade brasileira na maior crise de sua história econômica recente. Nada de novo, mas muito do arcaico e de projetos que se mostraram fracassados no passado.
Voltando às imagens do filme, a única que ainda não consegui visualizar, na situação do Brasil de hoje, é a da imensa bola de aço que traz a funcionalidade da orquestra de volta por intermédio de uma ação violenta externa. Peço para isto a colaboração do leitor do Valor.
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Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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